domingo, 29 de março de 2009

Do amor

Do amor
Não falo do amor romântico, aquelas paixões meladas de tristeza e sofrimento. Relações de dependência e submissão. paixões tristes.
Algumas pessoas confundem isso com amor. Chamam de amor esse querer escravo, e pensam que o amor é alguma coisa que pode ser definida, explicada, entendida, julgada. Pensam que o amor já estava pronto, formatado, inteiro, antes de ser experimentado.
Mas é exatamente o oposto, para mim, que o amor manifesta. A virtude do amor é sua capacidade potencial de ser construído, inventado e modificado. O amor está em movimento eterno, em velocidade infinita. O amor é um móbile. Como fotografá-lo? Como percebê-lo? Como se deixar sê-lo? E como impedir que a imagem sedentária e cansada do amor nos domine? Minha resposta? O amor é o desconhecido.
Mesmo depois de uma vida inteira de amores, o amor será sempre o desconhecido: a força luminosa que ao mesmo tempo cega e nos dá uma nova visão.
A imagem que eu tenho do amor é a de um ser em mutação. O amor quer ser interferido, quer ser violado, quer ser transformado a cada instante. A vida do amor depende dessa interferência. A morte do amor é quando, diante do seu labirinto, decidimos caminhar pela estrada reta. Ele nos oferece seus oceanos de mares revoltos e profundos e nós, preferimos o leito de um rio, com início, meio e fim.
Não, não podemos subestimar o amor. Não podemos castrá-lo. O amor não é orgânico. Não é meu coração que sente o amor, é minha alma que o saboreia. Não é no meu sangue que ele ferve, o amor faz sua fogueira dionisíaca no meu espírito. Sua força se mistura com a minha e nossas pequenas fagulhas ecoam pelo céu como se fossem novas estrelas recém-nascidas.
O amor brilha. Como uma aurora colorida e misteriosa, como um crepúsculo inundado de beleza e despedida, o amor grita seu silêncio e nos dá sua música. Nós dançamos sua felicidade em delírio porque somos o alimento preferido do amor, se estivermos também a devorá-lo.
O amor: eu não o conheço. E é exatamente por isso que o desejo e me jogo do seu abismo, me aventurando ao seu encontro.
A vida só existe quando o amor a navega. Morrer de amor é a substância de que a vida é feita. Ou melhor, só se vive no amor.
E a língua do amor é a língua que eu falo e escuto.

Paulinho Moska, músico e compositor

segunda-feira, 16 de março de 2009

alucinação em madri



A chegada era mais que esperada. Horas de expectativa. Tudo em dia: ações e medidas. Contudo, o emperramento. Barrada. Denegada. O que é isso? A barreira de acesso, a barreira da língua. Espera, espera. Espera. A comunicação cambaleia nos sacolejos da truculência. Sobre a mesa dinheiro, passagens, documentos, ironias. A burocratização atinge o limite (o seu núcleo duro): o vazio, sem lugar para explicações ou justificativas. Portas? Só as que a levem de volta. O tempo se expande, e se esgarça. De repente, o movimento: camburão. Avidez por água, por comida. Espera. Negativa. Renegada. Denegada. Horas e dias em cinzas. Já longe as cores mediterrâneas. Esvai-se o projeto de encontro. Onde estará? Perguntas não encontram respostas. Do mundo não se sabe: distante (incomunicável) ou reduzido às paredes de um lugar nenhum (desfronteirizado). Chora e estranha a sanha sádica dos uniformizados, executores de gélidos silêncios só cortados por enviesados insultos. O humano vai ao rés-do-chão. A civilização do velho continente mostra a sua cara, sua moral, seu contorno, seu medo, sua arrogância. E ela assustada, sozinha.
Novamente o movimento, alinhamento. Marcados como gado contaminado, são levados em grupo. Ela entra eles. Todo cuidado é reservado àqueles que sonharam, planejaram, arquitetaram. Sem conversa, sem desculpa. A indignação revolve corpos afásicos. Está quase. Mais algumas horas. Espera. Vôo confirmado e a entrada, e o retorno, após a acomodação de todos os passageiros com destino ao país que AQUELES ousaram sair. Quem mandou ser hospitaleiro? Ficar de braços abertos por aí? Descompasso ou complexo atávico?
Partiu, deixando sonhos e fomentando amargura.
Fica a impressão de que deu tudo errado, e o pior, hoje ninguém mais tem pudor em esconder.

para um rei assim: sem muita majestade

Não olha nos olhos
Estranha e recua, avesso do outro
E o desconforto se espraia


Seu ritual instaura o rígido -
Rijo o corpo e alma -
Em desenho de expressão saturada


Afirma o silêncio que sentencia mudez

Tédio e monotonia encurralam o Taciturno

À espreita do fim


(O que pode ainda o anzol neste filete forjado na recusa?)

quinta-feira, 12 de março de 2009

de um antigo sarau

Nessa Caixa

Nessa caixa! Mas não encontro a chave certa. O que é isso, ontem foi tão rápido, automático, mãos sensíveis ao toque, objetos em laboriosa participação.
Não é todo dia que a gente tem as engrenagens reveladoras em solidária exposição, não é mesmo?
Bem, mas o que guardo aqui? Nessa Pandora minimalista?
Vocês vão ver.
Aviso logo aos curiosos que não é nada demais.
Mas é especial.
Por que resolvi revelar, apresentar, expor? Não sei.
Mas garanto que está bem distante do exibicionismo.
Acho que me simpatizei com vocês e resolvi comungar. Nossa, a palavra comungar me soa muito católica, dançando no círculo do sagrado, e definitivamente não é esse o sentido da empreitada. Já que o que revelo aqui está na dimensão do corriqueiro, do ordinário da vida, quase trivial não fosse a sua importância, sua potência.
A idéia de preservar esse “alguma coisa” na caixinha é recente. Confesso que a idade pode ter pesado, logo agora que sou um jovem senhor, que me vejo “um novo jovem senhor”.
E também se deve ao fato de que formulei uma pergunta-mola-propulsora-pra-partilhar-intimidades-e-sucitar-encontros que tem me acompanhado, fixa que está na ponta do meu sapato, que é:
o que você guarda no seu baú?
Como quase tudo na vida, essa pergunta se desdobra, numa filiação multiplicadora – perguntas-filhas:
você tem um baú?
sim?
não?
por que?
uma caixinha no fundo da gaveta da cômoda, não?
por que uma pessoa tem/teria um baú?
o que de mais precioso poderia ser guardado em um baú?
guardar?
pra que?

(Curiosidades fora do lugar em giratória especulação.)
Ao falar de caixas, baús, lembrei-me de trechos de um poema que diz, mais ou menos, assim:

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é,
iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Esse Antônio Cícero sabe das coisas. E acredito que guardar não é mesmo esconder, não é trancar, mas aquilo que de alguma maneira apreendemos, por ficar, por nos passar, por sorvemos, por nos marcar.
No entanto, por que insisto nos baús? Ou melhor, em sustentar a necessidade de caixas? De querer saber sobre as caixas dos outros e, afirmativamente, desejar mostrar o que guardo?
Perguntas.
Elas não me deixam em paz, pernoitam em sonhos e vigílias.
Não sei se tenho a resposta, mas indícios. E o que guardo aqui quase configura um vestígio.
No fundo, o que motiva essa ânsia talvez esteja ligado à saudade. É isso a Saudade e a intenção de não perder o registro, a lembrança que inevitavelmente se esvai, se apaga.
Como era mesmo?
Tenho saudade de muita coisa, muita gente, e tenho medo. Daí a busca pelo registro fiel, fincado na memória, ou a preocupação em guardar objetos que falem de uma época, evoquem um momento e dêem crédito ao nosso discurso.
Tarefa inglória.
Memória, História, Pessoas e Objetos circulam em movimentos imprevisíveis, indômitos, fugazes. E estão todos, inevitavelmente, atrelados à morte.
E acho que aí reside o indício maior: se não temos saída para o inelutável, o que nos resta?
Mais uma pergunta: o que nos resta?
Ora! Algo que confronte a morte, que seja do seu tamanho, que tenha peito pra afirmar sua Vontade.
E é isso. O que eu guardo aqui nessa Caixa é uma porção da minha vida, da minha ética, da minha qualidade (ainda que precária) de existir.
Guardo aquilo que, por se expandir e me colocar em confronto com o mundo, me vitaliza e pede passagem:
CRIAÇÃO
INVENÇÃO
Pode ser pouco, mas (...)

terça-feira, 10 de março de 2009

em tempos de mudez



Essa é pra mim mesmo, quando andava mudo por aí.


EU VI VOCÊ ATRAVESSAR A RUA
MOLHANDO A SOMBRA NA ÁGUA
EU VI VOCÊ PARAR A LAGOA PARADA
VOCÊ ATRAVESSOU A RUA
NA DIREÇÃO OPOSTA
PISANDO NAS POÇAS, PISANDO NA LUA
E A POESIA REFLETIDA ALI ME DEU AS COSTAS
E PRA QUE PALAVRAS
SE EU NÃO SEI USÁ-LAS?
CADÊ PALAVRA QUE TRAGA VOCÊ
DAQUELA CALÇADA?
VOCÊ ATRAVESSOU A RUA
NA DIREÇÃO CONTRÁRIA
E A POESIA QUE MEU OLHO MOLHAVA ALI
QUEM SABE NÃO ME CAIBA
QUEM SABE SEJA SUA
ALI, ATRAVESSANDO A CHUVA
E TODA A LAGOA PARADA
VOCÊ NA DIREÇÃO ERRADA
E EU NA SUA

(Canção sem seu nome. Adriana Calcanhotto)