domingo, 19 de dezembro de 2010

Cinema de domingo


de José Eduardo Belmonte e equipe

sábado, 18 de dezembro de 2010

teima

- Teimoso. É, sou assim. Teimo em ficar, teimo em sorrir, teimo em tentar. A grande política talvez seja a teimosia. Uma teimosia pés no chão. Uma teimosia com asas. Uma teimosia de faca na mão.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Re(de)compondo AF – monólogo do olho no olho ao redor

Re(de)compondo AF – monólogo do olho no olho ao redor

(Ator sentado. Voz em off):
(Postura do ator sugere, algumas vezes, a intenção de comentar o que está sendo dito. Outros atores preparam o palco)

Olhe ao redor (Clarice Lispector)
Olhe para todos a seu redor e veja o que temos feito de nós.
Não temos amado, acima de todas as coisas.
Não temos aceito o que não entendemos porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas, coisas e coisas, mas não temos um ao outro.
Não temos nenhuma alegria que já não esteja catalogada.
Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora, pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas.
Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos. Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo.
Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda.
Temos procurado nos salvar, mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes.
Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura de ódio, de ciúme e de tantos outros contraditórios.
Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa.
Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada.
Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos o que realmente importa.
Falar no que realmente importa é considerado uma gafe.
Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses.
Não temos sido puros e ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer "pelo menos não fui tolo" e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz.
Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos.
Temos chamado de fraqueza a nossa candura.
Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo.
E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia.

- A vitória de cada dia? É disso que gostaria de falar aqui, com vocês? Não sei se (...) (Pausa) Será que quero pregar sorrisos em vocês? Trocar esse sorriso? Já faz um tempo que eu queria falar, que eu queria essa arena pra dizer algumas coisas. Sabia que havia uma vontade, que havia um corpo, que queria uma conversa. Mas não sabia bem o que dizer. Quer dizer, eu sabia que queria e o que queria, ou melhor, sabia que poderia, que viria a expressão se começasse. Confuso? (Silêncio) Eu também acho, mas aqui, vez ou outra, tudo se ordena.
Bem, pra começar, eu gostaria de dizer que eu fiquei. Vocês vão entender. Sim, resolvi ficar. Estava programado, pensado, incentivado e eu tinha dito sim, ia acompanhar, embarcar no projeto alheio com alegria. Alegria, sabe aquela que consente e a tudo diz sim com entusiasmo? Pois é. Era essa, desse quilate. Mas confesso que falhei. Perdi o trem. Minto, eu quis ficar. Eu quis. Ainda não sei bem porque, mas é que (...) eu quis ficar. E o que restou? (Pensa) O que restou? Nem sei se é de resto que eu falo aqui e agora, mas o que tenho é essa sensação de “todo o sentimento do mundo”, de que nesse liquidificador algo me é próprio e tem essa sensação gelada de solidão. Gostam de gelado? (Pausa) Fiquei aqui a desenhar, a colher impressões, a vasculhar gostos. Claro, vou falar da minha decisão de não ir, mas essa decisão é quase contemporânea desse esboço de mim. Ou melhor, foi esse esboço que, fragilmente, conseguiu dizer Não.

(alguns atores, timidamente e em variações): Não. Não. Não.
(Silêncio)
Acho que fiquei também pra me dizer, colorir com outros lápis e descobrir contornos que só é possível nesse improviso e experimentação, e isso aqui é muito do abismo que eu temia, não tenham dúvida.

(No fundo escuro do palco, outro ator desenha o esboço de uma pessoa. Música. Foco nos dois: o que diz e o que esboça)

Poderia ficar aqui fazendo mil perguntas sem sair do lugar. Nunca mais um passo. (Pausa) É difícil (Outra pausa). Quantas vezes vocês ficaram assim com vontade de não sair do lugar, de ficar esperando algo acontecer pra você ir junto, pra desaparecer no meio do tumulto ou que alguém viesse pra dizer alguma coisa e lhe dar a mão? Eu esperei. Esperei. E agora? Não vejo ninguém por perto. E soa tão estranho essa lembrança da espera no corpo.

(Pausa curta)
E o que vocês fazem quando (...) sei lá (...) não querem pensar? Não, não é isso. Quando não querem que uma dor (...) Não sei explicar. É difícil dizer que não se quer a dor ou se quer a dor. E talvez ela seja a única novidade no momento.

(Silêncio)
(Atores):
Um passo, um passo, um passo.
(Novamente o personagem-narrador)
Preciso de um papel pra listar. Gostam de listas? Eu necessito delas pra me orientar. Sim, tenho necessidade de apoio pra seguir em frente.

(Vai até a mala, também no centro do palco e retira coleções e papeis, até encontrar a lista)

(Uma das atrizes fala):
- “As listas podem ser de coisas que desejamos muito ou daquelas que queremos jogar pela janela”. O que gostaríamos de jogar pela janela hoje? Por que ainda não jogamos? E o que marcamos como prioridade pra uma vida?

(Todos vão para as malas e falam caoticamente, assim como colam estas frases no esboço):

* sorrir mais.
* andar de bicicleta.
* desejo, necessidade e vontade.
* pensar o mundo com “as coisas que lá cabem”. E cabe tudo.
* delicadeza.
* “onde está meu coração?”
* o risco.
* mais e mais encantamentos.
* “um olhar a cada dia”.
* cada vez mais a tranqüilidade no caos.
* uma nova suavidade.
* livre, assumindo as conseqüências.
* bons encontros.
* dizer mais: Não!
* não ter contornos.
* ação.

- Mas é isso. É isso. É isso o quê? O que eu quero? (Aponta para o esboço) Esse aí sou eu? O que eu quero sou eu? Está tudo junto nessa vontade? Ainda quero sorrir mais? E que vitória é essa de cada dia?

(Silêncio)

- É mais ou menos isso. Hoje é isso. É isso, viu. Um traço, uma linha, muitas voltas.

(Escuro. Foco no Esboço e nas linhas do palco. Lentamente, foco no ator que narrar em outro espaço do palco)

- Por que eu não consegui dizer isso? Mostrar isso? Por que eu sumi no sim? Eu tinha medo. Não acreditava em mim. Quer dizer, eu ainda acho que me falta convicção. Que não aprendi a falar com uma voz que fosse minha, mesmo que eu tivesse totalmente convicto, eu sempre olhava pro lado, sabe? Olhava ao redor pra perceber os movimentos de cabeça: reprovação ou consentimento.
Ele estava lá. Pra ser um guia, um condutor das minhas ações e dos meus pensamentos. E eu gostava tanto disso. Não sei quando (...) não sei quando comecei a mudar.

(Escuro)
(Vídeo com o mesmo ator que narra)

- Antes, bem antes do início de qualquer coisa: eu lhes digo que aqui, nessa escrita com o corpo, do corpo, no corpo, sou A. F.
Que posso ser Anderson, André, Antônio, Álvaro, Arthur, Alessandro, Alan, Américo, Aldo, Arnaldo, Adamastor, Afonso, Aureliano, Alencar, Alessandro.
Mas também Ana ou Alice, Amanda, Adélia, Amélia.
Não importa tanto os nomes.
Tenho 22, 28, 29, 35, 41. Também não importa tanto.
O que importa?
Há! E não é de só AMOR que eu falo. Se fosse só amor, não seria vida.

(Nesse momento, a mesma vertigem da cidade. Movimentação dos atores, ordenação das malas. Vídeo com o trecho do poema do Chacal)

de vez quando
vem um vento
ventríloquo
soprar frases feitas
na enfermaria do tempo
frases feitas
na enfermaria do tempo.
frases feitas
na enfermaria
do tempo
do tem
do...

- Claro que não foi fácil. Não está sendo. Chegar e dizer:
Aqui, está tudo bem, muito bonito, mas você nunca me perguntou se eu queria isso. Não. Eu nunca me perguntei se queria isso. Nunca um ouvido pra ouvir. E eu não conseguia ou queria ser ouvido. Talvez fosse mais cômodo esperar que você decidisse. Ou acreditar que aquelas brechas que você dava pro meu murmuro de aceite era uma conversa. Passos marcados. Na enfermaria do tempo, que eu corria pra só querer ver belezas nas danças travadas. E eram danças? Achava que podia pregar aquele sorriso que era menos. Um sorriso que eu nem sei se era meu. (Pausa) Não sou vítima, conduzi as coisas assim. Foi essa a nossa cumplicidade. Mas agora eu não consigo. Não vejo mais sentido.

Não foi bem assim que eu disse. Mas as frases estavam na vertigem de um vômito de palavras que, vez ou outra, faziam sentido. Eu queria fugir, mas queria dizer. Eu queria acusar, mas não era ele. Era eu. Era a gente.

(Voz em off): “Enfermaria do tempo trouxe um vento ventríloquo. Ou o deserto de João e Luiz”.

(Foco no ator, próximo à mala)

- O que eu tenho aqui. Uma mala. Um desenho. Um desenho e um rascunho. Um rascunho e um espaço. Um caminho e uma fala. Um corpo que desenha um desenho que é corpo. E três movimentos. Três danças. Uma decomposição.

(Escuro. Pausa. Foco no desenho ao fundo. Foco no ator ao Microfone)
(Personagem assume lugar de narrador):

“Nem parece que fui lá”
Ele, rapaz de investidas tímidas, refaz o caminho, manca e gaga, mas continua. De onde ele veio? Quem foram seus pais? Já viu o mar? Quais as suas mais guardadas lembranças? Ele lembra pouco. Tem pouco a dizer do que fez. Mas falava, falava, diagnosticava, resumia o mundo. Muito casaco, luva pra se proteger ao mesmo tempo em que dissertava sobre os sentimentos dos outros. Tudo por uma não afetação.
E de repente, uma saudade:
Mãe, escola, tardes sem fazer nada deitado na cama, sessão da tarde, conversas ao telefone, os sábados de esperança e a gostosa ansiedade dos domingos, caminhadas pra pensar, a gargalhada solta. E tinha aquilo que não sabia, ou sabia, mas não sabia mais do que um sabia vago.
Da família pouco sabia, que também pouco sabia dele. Seguiam em canoa e em silêncio. O que se dizia era de um ping pong pra constar.
Encapsulados, pensou um dia. Mas acha que ELA sabia mais, chegava mais, conduzia mais e protegia mais. Era o seu conforto.
Mas depois que ela se foi (...) ficou de pernas bambas.

(Volta pro palco)

- Eu era pra nós. Um nó aqui em nós. Somente nós. Amarrado no vínculo. Agora eu percebo.

(Atores de outras cenas, de modo disperso, brincando com elásticos)

Não gosto da palavra nó.
Nó é algo que aperta,
que prende linhas,
que não se abre,
que, atado, amarra, ao invés de esparramar.
Lembro que aprendi a dor nó de marinheiro.
Hoje me ocupo em desatá-los.
Desfaço, desato
e desabo em nós.
Mas nó também lembra 'nós',
lembra 'junto'.
Preciso de nós,
como preciso de barco sem rumo,
de leme à deriva,
de árvores ao vento,
de raiz,
de chão.
Eu ainda desato nó,
mas já é um rumo.
Os outros, o mar levou.
(Em cada braço de mar, há um pedaço de nós. Em cada enseada, um abraço.) [1]

(Simulando um andar em corda bamba)

- Nessa história, fui tão arremessado pra frente nas intempestivas. E era bom. Achava que era paixão. Gostava da desorientação, de não saber o que estava fazendo. Logo eu, o super certo, o sempre racional. Fui achando que bastava a convivência, que a relação era o que importava (...) o recheio a gente mexia até chegar no ponto. Da aproximação, sempre com pouca conversa, e muita fábula aqui, tudo parecia que acontecia: peles, peles, presença. Eu achava que mudava. Passávamos muito tempo juntos, sem que houvesse muita afinidade, muito que dizer. E era bom. Fumávamos bastante nessa época, principalmente nas tardes em que ficava sozinho em casa. Ríamos de tudo: dos desenhos animados, dos objetos que minha mãe comprava nas feiras de antiguidade e que acumulava na mesa da sala, dos livros que mostrava pra ele, das tentativas culinárias quase sempre frustradas. E nada mais importava. (Pausa) Falei de peles, de presença, mas havia sempre os nós, os enguiços. Era um querer e nada de pontes, somente fagulhas, pequenas intenções, movimentos fugidios. Pois ali, a conversa era ainda mais difícil. E eu fabulava uma paixão juvenil. Acho que ele também. Tinha algo que eu insistia em dar nome, mas sempre faltava um bom encaixe.
(Pausa)
Sabia pouco dele, só que ele morava no mesmo bairro com o pai.
Acho que ele me considerava um cara estranho e ficava curioso. Eu, apostava as fichas. E dali filmes, livros, cigarros, tardes, algumas palavras, um estranho silêncio.

(Encerra o percurso na corda bamba. Escuro)

Cinco anos.

(Foco no ator ao microfone, o mesmo ator): Como o mundo seria se fossemos mais atentos? Sim, atentos, não eu ou ele. Nós. Se a gente realmente colocasse a atenção como meta de vida? Do que daríamos conta? Quem culparíamos?

(Volta ao rabisco no fundo do palco, um pouco intrigado)

Engraçado como só agora me recordo do começo. Teve um momento em que me esqueci, me perdi daquele entusiasmo inicial, daquela curiosidade, daquela sensação de estar vivo. Sim, eu me lembro: cantava o “muito que eu li, pouco que eu sei”, com a alegria da superação. E não sabia direito pra onde ia, mas me achava tão remador, tão condutor, mesmo com as amplas zonas de silêncio, de acesso impedido, e que eu não tinha noção do tamanho. Tinha, achava, todo o tempo do mundo.
Olhar meu corpo hoje, as minhas mãos: que carregam malas, que apertam outras, que desenham e carregam guarda-chuvas, é a mais pura novidade.
Qual o corte do cabelo, que roupa usar, o que recusar, o que não quero mais (...) está tudo possível, ainda que tímido, naquele desenho, naquela mala, nesse passo.
Quando a gente pensa que a vida passou sem passar pela gente, que movimento devemos fazer pra que entremos nela, ou que ela entre na gente, sem medo, sem receio?
Medo. (Riso tenso) O medo é o meu casaco. Onde o deixei? Medo, medo, medo. De ficar sozinho.
E olha eu aqui, olhando ao redor.
(Volta a ri. Pausa) Cadê o meu gosto? Não consigo perder de vez a idéia de não ter conseguido. De ter fracassado. Isso ele disse: “é você que não está bem, precisa se cuidar. (...) Não posso fazer nada se você não dá conta”. Vai continuar dizendo que eu não dei conta, que eu sou o fraco, que tento explicar tudo pra não fazer. E eu recuo, aceito. (Silêncio) Sempre foi assim. Não sabia direito o que eu queria. Tinha sempre uma sensação de que estava tudo bem. Que estávamos felizes.
(Pausa) Mas, no fundo, eu duvidava. Eu queria ficar protegido, mas sabia que (...) às vezes, não tinha muito sentido pra mim.
E, quando eu comecei a arranhar um não, fiquei perdido e tinha mais clareza que estava botando tudo a perder. Que aquele vínculo forte estava se rompendo. E cadê o chão?

(Pausa. Se movimenta pra frente, como se fosse fazer uma confissão)

(Pausa) Outro dia li a descrição de uma pessoa: “Nele a vida era evidente”.
O que era evidente em mim sumia na afinidade.

(Microfone, outro ator):

E é nas elipses que a narrativa transcorre. Zonas de silêncio. Ele intrigado e no caminho. O fato é que havia um aprendizado naquilo que era muito intuitivo, mas também pesado pra que pudessem falar. O discurso (...)

- O meu discurso!

(Microfone, outro ator)

(...) o seu discurso sobre o afeto passava longe daquele movimento que não tinha receita. Ele seguia. Os corpos seguiam, havia exploração e acomodamentos. Uma forma peculiar de testar limites e um mundo particular, isolado nos rituais de fumo, peles e gestos expressivos no contorno sério daquilo que não conseguiam falar.

(Atores): E os tempos na suas operações: proximidade, distâncias, desbundes, pequenos rompimentos, traições, dependências, voltas, partilhas, outras proximidades, intimidades, outras dependências, costuras, traços, pontes (...)

(Foco no personagem-narrador)
- Havia passado um ano após a morte da minha mãe. Inevitável falar disso aqui, por que foi marcante e coincidiu com o movimento que já tínhamos começado de maior afeição. Mas foi aí que (...) eu acho que eu via a “evidência” de vida nele. Trabalho, afeto, corpo, presença. E eu havia perdido o ônibus. Era essa a impressão. Outras zonas silenciosas estavam lá mas, por outro lado, percebia um movimento intenso que pedia ação. Água represada pedindo passagem. Havia uma proposta, ou melhor, uma inclusão pra seguir a correnteza. Era estranho ver aquele corpo cada vez mais visível que corria pra dançar de qualquer jeito.
Diante do movimento, minha paralisia. E eu insistindo em bater cabeça pra acabar com o silêncio, ainda querendo que as palavras se encaixassem no que sentia e vivia.
Ele foi, planejou, se expôs como eu nunca havia visto. Muito cuidado e atenção. Eu estava em frangalhos.

(Pausa)

Naquele momento, éramos companheiros. Sentia raiva, inveja, amor. Estranha essa mistura?

(Pausa)

Também sentia raiva da minha mãe.

(Outro ator ao microfone, sendo conduzido e interrompido pelo ator-narrador, lê a carta):

Uma querida amiga assim falou: “devemos transformar a nossa dor (...) quem sabe em arte, mas elas devem sair da gente (...) ir pro mundo”. É curioso, mãe. Ainda não conversamos depois daquele dia, já que, confesso, tive medo e vergonha. Sim, vergonha, pois desejei a sua morte, sabe? Não de uma maneira explícita, deliberada, óbvio que não. Mas acho que houve um emaranhado de sentimentos, em que cansaço, tristeza e fragilidades (minha e sua) trançavam uma rede difícil de estender. Medo, talvez o mesmo que me acompanhou até agora, e me calou. Era como se não falar e não pensar me eximisse de um sofrimento, me trouxesse uma paz assentada no conforto de posturas bem ensaiadas (papeis avulsos do sofredor, da vítima das circunstâncias). Só que, bem dizia o poeta: as coisas não têm paz. E é no compasso do incomodo, das intensidades que cismam dançar em mim que lhe resgato, lhe encontro e me despeço. Acho que essa carta pode até soar como um acerto de contas, no entanto, está mais pra uma homenagem e um delicado acomodar: da saudade, da sua presença em mim (inspiração e repressão). Hoje, ao lembrar de você, tenho a impressão de que não tenho mais claro o seu rosto, são múltiplas imagens de tempos diferentes, provavelmente significativos. É uma mãe que se multiplica, ou se fraciona, com várias vozes e uma presença que oscila entre o esfumaçante e o denso: por vezes, esfinge. O seu cheiro e seu calor, no território sutil da lembrança, permanecem intocáveis, e acentuam uma vibração que lateja o corpo. Tantas coisas para dizer, que é preciso organizar as palavras, as orações, os períodos. No fundo, lamento muito o que não disse, o que não agradeci, o gesto carinhoso que não consegui expressar, a palavra, a explicação, a conversa ... .

- Ele foi presente e eu aceitei a segurança, e um não mais querer saber o significado do gesto. Confiava totalmente no construtor de prédios. E, ele, cada vez mais graduado em ir além dos prédios, em áreas de lazer, convivência, jardim e pontes. Eu, olhava pela janela, nas brechas da cortina. Com um medo danado de perder.

(Novamente acrescenta elementos no desenho ao fundo. Depois se volta para o centro do palco)

E eu seguia o caminho bem ordenado: estudo e adequação. Nem a novidade da faculdade me levava à autonomia. Claro que exercitava sempre o discurso teórico ao falar dos outros, dos casos alheios, das posturas, das sensações dos outros, mas não via aquela “evidência” em mim.

(Microfone, o mesmo ator):
5 anos, 3 meses e 14 dias. Idas e vindas, mas sempre lá.

- “Nem parece que foi ontem”. Nem parece que fui lá. Até que ele apresentou a viagem, a oportunidade de estudo. Era o projeto. Tentei adequar a situação, ir também. E a organização e o planejamento ocuparam aquele mistério de antes, que já havia sido ocupado pela farra, pelo desbunde, pela gritaria pra dizer, pelo conforto. Era pra ser, diziam. Tudo certo, diziam. Que engajamento, que vinculo, também diziam. (...) Nem sei direito onde foi que (...) nem como consigo hoje (...) aquele ali (Aponta para o esboço). Aquilo ali foi uma façanha.
Parado com uma mala na mão e a outra que não conhecia e que apertava (...) não conseguia. Não conseguia. Era medo? Era o que? Ia romper demais? Não sei. Não sabia o que dizer. Pela primeira vez, não tinha um discurso pronto, uma frase de efeito. Era uma paralisia. É.
Ainda estou aqui, sem saber pra onde vou, sobre o efeito daquele NÃO.
Não sei mais o que falar. Isso é apenas o que sei de mim. Ali, aquela façanha talvez não seja obra do medo.

(Pausa)

Nem lembrava daquela carta.

(Pausa)

Acho que nós dois sabíamos que não dava mais. Que aquela costura tinha que acabar. E eu tô perdido. Fudido. (Pausa) Voltar pra onde? pra que?

(Sons da cidade)

- Não há nova suavidade agora, e sei lá das pequenas esperanças. É a mesma sensação de abandono (...).

Não era a viagem, nem ele.
E a partir de agora, (aponta para o esboço) somos nós.

(Foco no esboço e no ator. Voz. Luz apagando lentamente):

Um dia sonhei que podia atravessar essa ponte. Sonhei que os passos eram dados com segurança, que minhas pernas não tremiam. Que até podia olhar pra trás, sem medo, nem busca de aprovação, algo como: - vá sim, você merece ser feliz. Um dia sonhei que a decisão não estava sustentada em frágeis bambus, que a força era mantida por um desejo elaborado.
Um dia sonhei.
Mas ainda estou aqui. Sigo devagar, dando voltas. Às vezes estaciono. Em outros momentos percebo que a ampliação dos contornos se dá devagar, quase imperceptível a olho nu. A alegria roça a minha pele, mas, arredia, insiste em firmar o desapego. Eu já não lamento.
Recolhido, em danças que só eu percebo, por se darem em uma esfera íntima e inacessível, ouso movimentos de força que julgava impossíveis. Voltas, deslizes e aberturas compõem quadros sem molduras, cartografias sem limites nesse meu devir-bailarino.
Em um contato improvisação, contato improvisação.

***
[1] DESATAR, ADRIANA MONTEIRO DE BARROS.
- Texto é parte da peça Pequenas histórias de trocas de pernas, peles e olhos nos seus arroubos e arredores (Anderson Feliciano e Mário Rosa)