sábado, 26 de março de 2011

somos

somos contemporâneos.

domingo, 13 de março de 2011

perguntas do momento

como chegar ao expressivo sem ceder à representação? qual o caminho de um pensamento e de uma presença sem imagem? como manter em cena o incorpóreo tantas vezes fugidio?

..,

No meio da noite. Liga ansiosa tentando encontrar a resposta para uma pergunta que não quer fazer. É essa a sua cristalização, aparentemente. Ronda sem chegar lá, faz do lamento sua obra, esquece o outro lado. Um comentário que rascunhou a chancela de mimada na testa é a motivação da onda reativa, refratária ao surf. Só a imagem importa para ela. Nem mesmo chega a se dar conta da força que desatualiza o encontro com ele, às duas da madrugada.

das antigas

Não. Sim.

(Sentada em uma cadeira. Olha em direção à platéia. Poucos movimentos, apenas a fala enfática)

- Veja bem. Posso lhe falar? Foi ontem. Decidi. Sim, decidi. Que o não seria a pauta. Por que? Bem, não sei explicar, mas estava na hora. Quero dizer (...) espera! Nada é tão elaborado assim, racionalizado. Posso dizer que durante a minha vida toda fui uma mulher que disse sim. Sim, sim pra tudo. E isso me confortava sobremaneira. Mas sabe quando esses sins passam a não sair bem da boca? Quando agarra na embocadura? (pausa) O que eu estou dizendo? É, talvez seja uma espécie de recusa, mas não gosto dessa palavra. O que eu sinto é mais forte que eu, portanto não passa por uma segura vontade. Pois é, o sim que me constituía, o sim que me apresentava, o sim que me credenciava no mundo, o sim que me apaziguava e me protegia de qualquer remorso. O sim não cabe mais em mim! E eu optei por exercitar o não, delicadamente, timidamente, o não. Hoje não, agora não, não gostaria, prefiro não. Não, no presente. Não. Não, minto, menti agora para vocês quando disse que os meus não eram obras delicadas, tímidas. Isso aconteceu poucas vezes nesse pequeno ensaio que faço hoje. As pessoas, principalmente aqui em casa, já se acostumaram com os meus sins, e estranham com raiva e, às vezes, com estratégica compaixão a minha coleção de nãos.

(Tira o casaco e os sapatos. Ainda sentada)

É isso, tem momentos em que preciso ser mais incisiva sim, com os nãos. Chega. E as reações não poderiam ser piores: olhares, queixas, estrondos desmontam a casa. As paredes ameaçam a cair. Como é estranha a constatação de que tanto sins sustentassem isso tudo.
Hoje eu não acordei ninguém, eu não respondi as frases de sempre, não demonstrei preocupação sobre a ordem das coisas na casa, não exercitei o falso afeto, não compartilhei impressões que me são distantes e tolas, não me movimentei seguindo as regras do cotidiano labor da dona-de-casa. Simplesmente me calei. Calei e nessa cadeira fiquei, até que me notassem.

(Escuridão. Voz da personagem)

- É preciso delimitar fronteiras, não quero me perder. Dizer pode ser o começo de algo, um sim talvez. “Com quantos nãos se faz um sim?” Mas que sim é esse que hoje almejo?

(luz)

Custou que me notassem. Claro que havia um estranhamento, mas é como se algo faltasse. A engrenagem não era eficaz, algo travava. Em um primeiro momento, a preocupação: O que houve? Está doente? A pressão, como está? E os remédios? Diante da minha afirmação, que era uma negativa; ou, de uma negação, que era uma afirmativa, percebi o incômodo se instaurando. O tempo da delicadeza foi pelo ralo.
- O que está acontecendo?
- Você não tá bem não!
- E agora!? Deprimida?
É sempre assim.
(...)

terça-feira, 1 de março de 2011

Pina Bausch


"Do mesmo modo que há um impensável do pensamento no interior do pensamento, existe também um "inatuável" no coração do gesto: gestos que quereriam prolongar-se em gritos, vozes que trazem consigo múltiplas vozes inarticuladas, gestos que continuam a convocar outros gestos como que para acederem à fala que continua a escapar ao ato."
José Gil, Os gestos do pensamento: Pina Bausch. Movimento Total - O Corpo e a dança.

uma pergunta

como manter a potência nos processos formativos e não se enfraquecer diante da lógica de controle e finalidade da instituição escolar?

de Janeiro

A Natureza-Morta de João


João sentado junto a Marcelo e Leandro. De relance percebe que algo acontece. Uma forte impressão lhe ronda e, num movimento de proteção ou investimento na “paz”, prefere focar toda atenção na pintura de natureza-morta na parede. Será? É a pergunta que se desenha sobre a maçã que rola sobre a mesa. Sua atenção aparente permanece lá, e esta aparente atenção focada lá e desfocada cá, entre os convivas, não é percebida. Os dois conversam, conversam e é assustador para João ver tanta alegria naquela conversa. João não sabe precisar, mesmo com esforço, o quanto de inadequado é todo aquele (...), toda aquela sensação. Eles não percebem seu desassossego, sua perscrutação sutil. O quadro se torna uma espécie de via para o passado em que João relembra o gosto bom de uma conversa parecida, com direito a olhares que desenham identificação e silêncios indiciários. Natureza-morta. A vontade de João é sair correndo daquele apartamento até que uma esquina lhe seja segura. Mas ele não corre, não sai do lugar, não desvia os olhos do quadro, não deixa de obliquamente imaginar o quanto já perdeu. Sua e tenta, sem grande esforço, fazer um comentário que mude toda a rota da conversa. Em vão. São de órbitas diferentes o movimento dos astros. Todo um bom mocismo, ou talvez um estranho engasgo, o impede do grito que um dia pensara ser capaz. Nessa divagação, João subitamente relembra uma frase lida há muito tempo, e que ficara na memória como uma mensagem isolada que adquiria potência de imagem: Um grito parado no ar. Ri sutilmente, pois nem do inicial grito foi capaz, ou mesmo de qualquer ruído que rompesse o doloroso estado sólido-gelado do medo. Ele, João, é somente olhos e um sólido-gelado incrustado na cadeira. Marcelo, que se mantém com a mão sobre o joelho de João, numa lembrança do que foi e numa sugestão do que pode ser em outra órbita, deixa transparecer um corpo livre, um corpo convite. Leandro finca surpresa em território perigoso, semeando ousadia, ousadia daqueles que apreciam o trabalho diário em amplos jardins. Afinidades eletivas, coincidências, dúvidas, gelo, trocas, sugestões, olhares e tantos outros afins finca a cabeça de João, com Bebel Gilberto colorindo panos de fundo e incrementando os retratos múltiplos nas paredes que, pesadas e opressivas, anunciam o esmagamento. A Natureza-Morta se intensifica em cores e vibrações. Um estado de febre rege os movimentos de João. E se, de repente, vamos embora? Não, afinal a casa é sua e o convite foi seu. Se pergunta também sobre o quadro na parede e sobre uma sensação de vertigem anunciada. Já não ouve o que dizem, não compartilha com sorriso nem aceno de cabeça. Ele é todo lamento de algo que não estava lá, naquela mesa. O Como não percebi? é insistente. E, num estalo, o que seria uma apresentação social rascunha-se como o principio de alguma coisa que não começava ali. A natureza morta tinha vida, e isso era o que mais o incomodava. Um silêncio e uma agitação reposicionam as presenças, que sentem as paredes, o gelo e a febre em gradações variadas. João exercita um silêncio que conduz outros silêncios e gestos. Percebe uma posição que ultrapassa a do anfitrião. É ali o criador de uma obra, sua grande obra pictórica. Um trabalho que utiliza resíduos, escombros, tecidos já não mais usados, acrescidos de um esgarçamento do tempo materializado no mais requintado verniz. Seu quadro cristalizado permanece sobre o gasto ocre de uma parede recentemente percebida, tendo traços assimétricos continuamente renovados pela dúvida. Mas o que corrói mesmo João é o vislumbre de que não cabe mais naquele lugar e de que não é a razão de toda aquela alegria. Em sua Natureza-Morta o chão conversa com a parede em conluio. Não cabe mais certezas nem confortos, desintegra-se a morada da verdade.