domingo, 29 de setembro de 2013





sua mania era colocar um pé sobre outro e assim ficar de modo mais natural possível. nessa posição, que convinha principalmente aos momentos de conversa, tentava sempre chegar ao agradável ponto de intersecção que conjugava aquecimento e equilíbrio. se fluía o papo, o gozo era certo. estrutura e desenho, corpo e gestos, no ir e vir dançante das sensações.








bailarino sentado na cadeira no centro do palco sem se mexer. balbucia algumas palavras:


corpo? corpo? corpo? cadê você? assim, aqui, isso. lento, lento, nesse compasso, agora, junto. vôo na luz; eu, ele, ela, e também ele, e mais ela. dança, físico, palavra não dita, comunicação em espasmos, vai chegar. chegou? círculo, ritual, música, nosso japão tropical e a delicadeza no fino monumento composto de carne, força, órgãos que se ausentam, linhas, fugas e presenças. bacias lanternas chapéus, meu escudo e minha roupa, minha prancha e meu refugio. marcha dança, marcha ré, duplos no vazio, preenchimento a conta-gotas no tempo expandido. o mundo gira e se alinha no som que parece não ter começo nem fim, paira e se faz chão de uma morada errante.

sábado, 28 de setembro de 2013

pede a benção a Deus antes de entrar. sabe dos riscos e da possibilidade de se perder. contudo,  há outros pesos operantes em seu espírito à beira do precipício que a faz prosseguir. do mal se benze e tenta afinar seu canto no compasso do sagrado, sagrado profano nas espirais do tempo. terceiro sinal é como uma trombeta que anuncia a provação da noite. enlouquecida de fé, simula um restauro que nunca houve, reafirma a diferença na semelhança do que não se perdeu, retém o discurso nas dobras de suas palavras e canções, e dança. filho e passado e presente e corpo e encontro e Ele, seu restauro, sua cidadela, sua contenção, sua expansão reformulada. vai no fôlego e encontra a paz no intenso das horas. aquecida pela partilha musical, sonda seu desejo e frequentemente aponta as alturas, como se quisesse alçar, em reverência, pra outras dimensões o comum que cria. sente como que presa a fios generosos na sua extensão e elasticidade: estão lá, porém não impedem que rodopios aconteçam, pelo contrário, deixam de ser amarras e se transformam em objetos lúdicos.irmandade, rito e oração numa ordem de festa fortalece a mulher de muitas frentes que não cabe em reduções moralizantes e apressadas. o delírio e o caos formam um deus bailarino, é o que parece perceber quando canta (ou talvez não perceba, só sinta). deus que dança e canta e ri na imanência da festa naquela noite.


a partir de agora ela estava sozinha. perdeu-se deliberadamente dos companheiros iniciais pra se aproximar da enérgica força daqueles com paus e pedras. olhos irritados e sensação de sufocamento poderia ser a antecipação, ainda que distante, da vertigem já sentida. mas não havia pensamento de futuro em meio a barafunda no entorno e que parecia também tomar conta dela. sentia, ao mesmo tempo que paralisada, em franca atuação por compor aquele bloco de adesão à turba. era também multidão em manifesto, em repúdio, em violenta hostilidade à hostilidade maior, instituída e histórica. sem bandeira e vagando por entre pessoas que corriam e gritavam, costurava atabalhoadamente a rua que não era mais rua e seu corpo já perdia a dimensão cotidiana - havia algo que a fazia lembrar do tesão de estar no palco -, e também já não era corpo, ou melhor, era sim corpo em composição com algo que ela recusava chamar de maior por receio de qualquer transcendência. corria e trombava em pessoas que lhe empurravam como se estivesse imersa num mar de ondas revoltas. alegria do surf poderia ser uma imagem cabível ali, porém redutora. o impacto do menino que caiu do viaduto lhe trouxe o assombroso peso do real. qualquer sentido parecia estar submerso ou além do tempo presente. 



ela disse sim. naquela noite, depois de rodar pela rua predileta, centro velho da cidade. gostava de perambular sentido medo e excitação, filhos dos olhares invasivos e das eventuais abordagens. não parava, não conversava, era sempre assim, sem fixação. olhava, era olhada, andava, uma latinha de cerveja, um cigarro picado, mochila nas costas, trombadas intencionais, um lance rápido de pele. era o que cabia caber naqueles recortes de noites. mas naquele dia ela parou e disse sim. não sabia porque, mas aquele grupo alterou sua trajetória usual, rompeu com o seu emparedamento errante. sim praquela conversa debaixo da marquise, após a sopa, sim, resolvera ficar, e tentar quebrar o lance rápido. inicialmente só queria ouvir o que gritavam, perceber do que riam, entender o que os levavam a ficar ali juntos. sim, já os tinha visto, mas naquela noite ela quis mais. defronte ao grupo, não sabia como chegar além do olhar e da querência. sim, percebia que essa palavra chamado precisava derreter na noite e virar outras afirmativas, mais afetivas, mais efetiva, com menos gelo. sim, sim, sim. cerveja e cigarro na partilha, perguntas sem respostas, conversas sem começo ou fim, informalidades e personagens que sobrevoavam quase sem existência, ou melhor, existiam no etéreo da memória da rua. sim, era mais que isca a palavra à beira dos lábios. sim, calma e chão, pouso e promessa. a lua e os corpos, delongados lances de pele.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013


ele disse, com aquela estrutura emparedada de homem/macho/avesso às sensibilidades, que eu era o norte: no convite, na recepção, na vontade, no desejo. até ali, na ante-sala de qualquer exposição da figura, somente eu tinha voz e expressão. contudo, vazavam da imagem vista à distancia jogos outros que revelavam o avesso do avesso do avesso do prazer que refazia a escrita e evidenciava outras configurações, como se invertesse a ordem do poder, ou melhor, como se anulasse a ideia de poder e captura. não havia norte no acontecimento. desembestado no tempo, ainda assim algum fio me mantinha amarrado na esperança.
o peso mortuário de futuro era o pai da angústia.



sexta-feira, 13 de setembro de 2013

"Estou contando ao senhor, que carece de um explicado. Pensar mal é fácil, porque esta vida é embrejada. A gente vive, eu acho,é mesmo para se desiludir e desmisturar. A senvergonhice reina, tão leve e leve pertencidamente, que por primeiro não se crê no sincero sem maldade. Está certo, sei. Mas ponho minha fiança; homem muito homem que fui e homem por mulheres! - nunca tive inclinação pra aos vícios desencontrados. Repilo o que, o sem preceito. Então - o senhor me perguntará - o que era aquilo? Ah, lei ladra, o poder da vida. Direitinho declaro o que, durando todo o tempo, sempre mais, às vezes menos, comigo se passou. Aquela mandante amizade. Eu não pensava em adiação nenhuma, de pior propósito. Mas eu gostava dele, dia mais, mais gostava. Diga o senhor: como um feitiço? Isso. Feito coisa-feita.
Era ele estar perto de mim, e nada me faltava. Era ele fechar a cara e estar tristonho, e eu perdia meu sossego. Era ele estar por longe, e eu só nele pensava. E eu mesmo não entendia então o que aquilo era? Sei que sim. Mas não. E eu mesmo entender não queria. Acho que. Aquela meiguice, desigual que ele sabia esconder o mais de sempre. E em mim a vontade de chegar todo próximo, quase uma ânsia de sentir o cheiro do corpo dele, dos braços (...) - tentação dessa eu espairecia, aí rijo comigo renegava. Muitos momentos. Conforme, por exemplo, quando eu me lembrava daquelas mãos, do jeito como se encostavam em meu rosto. Sempre. Do demo. Digo? Com que entendimento eu entendia, com que olhos era que eu olhava? Eu conto. O senhor vá ouvindo. Outras artes vieram depois."


(Guimarães Rosa em Grande Sertão :Veredas)

formas breves. lia rodrigues


hora e a vez (...) em elaboração. vai, matraga!




as roupas se acumulavam sobre mesa e cadeiras. o tempo encontrou materialidade nas crostas de poeira e gordura. as cortinas cerradas e os móveis em frágil sustentação eram a comprovação da porção abandono da morada dos zumbis. tudo ali, naquela casa, revelava a pior dimensão do tempo: decomposição e um nada germinar. depois que ela se foi, pensou o filho desgarrado, é como se o centro de sentido e funcionalidade daquela família tivesse perdido o motor, nem sombra do automatismo que empurrava os dias pra frente, que colaborava no esboçar do simulacro de família.
as visita àquele lugar eram cada vez mais angustiantes, principalmente pela sensação de que as crostas de poeira e gordura impregnavam o corpo e puxavam para baixo todos que ali chegavam.
o pai, de longe o mais ousado, também não conseguira romper o eixo centrípeto, já que abandonara o projeto de saída do barco sem timão. numa cantinela tchekoviana, ainda afirmava a vontade de exílio,  de tomar a inédita condução da vida em outra embarcação, mas nada de um passo maior, já que seu arrastar estava, por melindres morais, em sintonia com o inerte posicionar dos filhos.
aquele castelo em ruínas era de uma falsa fragilidade que amedrontava, pois seu destino não era se desfazer mas se manter sólido e monumental cada vez que um pedaço se desmoronava ou uma fenda aparecia. sua inconfessável função era o de se constituir o templo da memória em que se cultuava dissimuladamente a morte.