domingo, 31 de outubro de 2010

domingo, 3 de outubro de 2010

Ruínas do Castelo

(Personagem sentado à mesa de alguma repartição. Ao fundo, um grande armário de metal; sobre a mesa, pastas e papeis. Foco, fala como se estivesse palestrando, mas há algo de estranho na sua exposição.)
- Vejam bem. (Se concentra) É um prédio de arquitetura moderna, com seus corredores amplos, suas formas angulares, espaços vazios e áreas verdes. Há trinta anos. (Pausa. Um pouco confuso. Retoma a fala) Trinta anos de uma fixação redentora no miolo da periferia. (Levanta-se, postura solicita) Querem alguma coisa? Posso ajudar? Por ali, senhor. Agora não há ninguém que possa fazer este serviço; somente depois do almoço. Sim, pode esperar. Já, já eu carimbo. Precisa anexar o comprovante de residência. Pode deixar que eu reproduzo. Sim, eu reproduzo. (Senta-se. Pega um carimbo e apressadamente carimba vários documentos de modo mecânico) O ideário da época de sua edificação entoava a voz do progresso e de um vai pra frente para poucos. E assim foi adornado e repaginado o monumento, oscilando nas propostas e pegando carona no barco de nossa combalida democracia. Grande castelo nas cinzas da história: concorrido, bem freqüentado, democratizado, analisado, mitificado. Balança mas não cai. (Olha as rachaduras. Vai até uma delas e averigua com atenção. Retoma a fala) E aqui estamos, entre o passado e este “alvissareiro” presente. A estrutura é frágil, com rachaduras expostas e pouca sustentação na base. No entanto, há um misto de cegueira e fé, com incrementos de cinismo, que empurra os dias e justifica as ações. (Pede um cúmplice silêncio) Mas isso ninguém pode saber. Por aqui tudo faz sentido. Tudo é importante. “Relevante”, é como gostam de dizer. Eu também já concordei e ressaltei muito esta “relevância” e, quando convém, ainda faço uso. Faz parte do jogo. (Abre as gavetas do armário e retira pilhas de papel, que coloca sobre a mesa. Respira fundo) Carimbo, recorto, colo, copio, desenho, entrego documentos, recolho assinaturas, encaminho listagens, fiscalizo e repasso recados com muita eficiência. Sou bem útil aqui. É verdade, bem útil. Imprescindível. Às vezes até me esqueço do estremecimento do castelo, e quase me convenço que o percurso é de calmaria. (Pausa) Calmaria e um barco há muito tempo ancorado. Bela imagem. Até onde conseguiremos ir? (Pausa) Chego também a duvidar que os ruídos se devam as rachaduras. Talvez seja apenas uma acomodação (Pausa) dos desencaixes. É (...) o buraco pode ser mais embaixo. (Pausa) Elas sempre estiveram aqui. Sim, as RACHADURAS. Eu bem que mostro pra pessoas, mas a maioria nem dá bola. Vocês conseguem ver? Eu meço, diariamente, sempre que chego. E tenho aqui uma tabela, um gráfico e uma análise criteriosa da tabela e do gráfico (Retira do armário um calhamaço e um gráfico de proporções gigantes) que se detêm sobre as variações de crescimento das rachaduras. (Ao olhar os dados, justifica) É preciso atualizar meus dados, sabe? Porque nos últimos anos a curva de crescimento foi bastante expressiva e ainda falta concluir alguns experimentos. (Detidamente, usa uma canetinha pra desenhar “rachaduras” na parede) Crescimento exponencial. Crescimento exponencial. Tem também um dossiê sobre uma rachadura específica, excepcional (Para o desenho) de um crescimento atípico. Mereceu uma pesquisa aprofundada, um tratado sobre a fenda. Ainda pretendo publicar esse material. (Pausa) Eu me pergunto sobre a melhor maneira de se conviver com esta, essas, estas (...) fendas, e o que é possível fazer, ou enxertar, pra manter minimamente um “equilíbrio delicado”. Mas acho que estou falando demais. (Longa pausa. Senta-se sobre a mesa e utiliza um binóculo). Um passeio por seu interior, hoje em dia, revela algo que surpreende. Pessoas em vários pontos do prédio com olhares, com expressões, com gestos, com passos (...). (Observa. pausa) Curioso, muito curioso. (Levanta-se. Retira da gaveta algumas fotografias. Coloca algumas sobre a mesa e prega outras nas paredes próximo ao desenho das rachaduras) Não se sabe bem o que fazem. Alguns vagam, outros permanecem imóveis em algum canto ou mesa estrategicamente colocada no sentido de aparentar alguma eficiência. Eles chegam pontualmente, como os outros profissionais ainda em ofício, e compõem o grande mural que adorna e reforça o zelo pela moralidade do grupo a que servem. Não, eles não estão em ofício. Estão em desvio. (Em movimento corda bamba, ainda com binóculos) Daí os olhos, a expressão, os passos. (Pausa. Novamente “ao carimbo”, meio catatônico. Parado) Antigamente, isso aqui era diferente. Não tinha (...) era (...) a gente podia (...) eu conseguia (...) hoje é só (...) eu não consigo (...) Posso, posso (...) Me pediram pra (...) pra (...) Tenho que perguntar (...) Colorir as rachaduras? (Muda drasticamente, ocupando outro lugar no espaço) Mas é isso mesmo, eles não têm autoridade. Você não ouviu o que disseram. Eu já falei que não vou fazer, não foi pra isso que me formei. É humilhante. Estou sendo perseguido aqui. Não vê como ela me olha? Hoje nem me cumprimentou. E passou por mim duas vezes. Pra falar a verdade, eu só aceito fazer quando eu me simpatizo com a pessoa, já estou fazendo até demais. Não pode entrar por aqui não. Você vai onde? Falar com quem? Qual o assunto? Identidade. Assina aqui. Olha, vai esperar um pouquinho. (Retoma à mesa) São tratados com certa indiferença e, nas acaloradas reuniões, permanecem alheios e nunca são citados. Sim, no pacto explícito em que certo “saber”, ação e sentido são as ferramentas de trabalho e armas de guerra, não há espaço pra eles. Afinal falta ali A ação, falta O senso e A segurança, falta uma idéia bamba de Saúde e o “Conhecimento” não encontra o canal de uma consentida expressão. (Pausa, novamente um convite cúmplice) É por isso que eu falo, e muito. Falo pelas rachaduras. (Pausa) Entre o que se desconhece, o que se conhece, o que se diz conhecer e o que se negam a conhecer estrutura-se isso aqui, o frágil castelo. Eles (Cúmplice), os zumbis, também chamados desviados de função – desviados, isso mesmo que vocês ouviram – vão ultrapassar o número dos que se ocupam (...) (Curta pausa) “os com função”, que se ocupam com algo considerado de MUITA utilidade e cheio de sentido. Eles (Cúmplice), os desviados, ficam por aí, reduzidos a um diagnóstico que atesta a inadequação, realizando pequenas atividades imprescindíveis, imprescindíveis. (Pausa. Adquire movimentos mais lentos e melancólicos. Procura arrumar a mesa, sem sucesso. Vai, após tomar algum medicamento, lentamente até uma das rachaduras. Observa. Retoma) São, na sua maioria, silenciosos, ofegantes e balbuciam frases que poucos compreendem. Vocês estão entendendo? Tento rastrear suas histórias e acompanhar as curvas de crescimento deste grupo. Muitos falam por eles, mas eles (...) pouco dizem. (Pausa) É também por isso que eu estou aqui. (...) (Retira da gaveta e cola em seu corpo pequenos papeis adesivos com palavras “moralizantes”: dever, moral, sentido, direito, respeito à diferença, fé, conservação, poder, lei, organismo, cuidado, limite, saúde, deus, organismo.) Só um momento, por favor. Ainda não abrimos, senhora. Como pode? Esse comportamento é inadmissível. Não condiz com este espaço. Isto aqui é uma família, uma família. Temos que nos defender e nos proteger. Mas, principalmente, temos que cuidar. Amor e fé! Paz e conservação! (Foca nos papeis e nas rachaduras. Pausa) Eu também estou com as mãos metidas nesse “negócio da administração da vida”. (Pausa) Quem não está? (Pausa) Os desviados? Não conseguiram escapar, muito antes pelo contrário. (Pausa) O que eu fazia? Bem, eu nem me lembro. Será que eles se lembram? (Pausa) E o nosso exército só faz aumentar. (Retira outras fotografias da gaveta) Ainda vamos ocupar todo esse castelo, antes do desmoronamento. (Retira mais pilhas de papel do armário. Pausa) E mesmo depois, já enterrados, assumiremos nosso lugar imprescindível. Imprescindível. Estamos sendo treinados pra isso. Pro deslize na plataforma desses corredores cheio de justificativas. Afinal, é aqui que vamos ficar. Sempre aqui. Pregando estas máximas em seus descendentes, definindo esse caminho estreito, sem clareiras. Mas eu não deixo de falar. (Pausa) E oriento também, cumpro o meu dever aqui. (Pausa) E meço as rachaduras do castelo. (Pausa) Avalio a profundidade da âncora. (Pausa) E bocejo. Vou esperar aqui, antes de tudo ruir, (...) pregando sentido (Uma piscadela enquanto some nos adesivos e nas pilhas em cima da mesa. TOCA O SINAL)