domingo, 19 de dezembro de 2010

Cinema de domingo


de José Eduardo Belmonte e equipe

sábado, 18 de dezembro de 2010

teima

- Teimoso. É, sou assim. Teimo em ficar, teimo em sorrir, teimo em tentar. A grande política talvez seja a teimosia. Uma teimosia pés no chão. Uma teimosia com asas. Uma teimosia de faca na mão.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Re(de)compondo AF – monólogo do olho no olho ao redor

Re(de)compondo AF – monólogo do olho no olho ao redor

(Ator sentado. Voz em off):
(Postura do ator sugere, algumas vezes, a intenção de comentar o que está sendo dito. Outros atores preparam o palco)

Olhe ao redor (Clarice Lispector)
Olhe para todos a seu redor e veja o que temos feito de nós.
Não temos amado, acima de todas as coisas.
Não temos aceito o que não entendemos porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas, coisas e coisas, mas não temos um ao outro.
Não temos nenhuma alegria que já não esteja catalogada.
Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora, pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas.
Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos. Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo.
Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda.
Temos procurado nos salvar, mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes.
Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura de ódio, de ciúme e de tantos outros contraditórios.
Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa.
Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada.
Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos o que realmente importa.
Falar no que realmente importa é considerado uma gafe.
Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses.
Não temos sido puros e ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer "pelo menos não fui tolo" e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz.
Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos.
Temos chamado de fraqueza a nossa candura.
Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo.
E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia.

- A vitória de cada dia? É disso que gostaria de falar aqui, com vocês? Não sei se (...) (Pausa) Será que quero pregar sorrisos em vocês? Trocar esse sorriso? Já faz um tempo que eu queria falar, que eu queria essa arena pra dizer algumas coisas. Sabia que havia uma vontade, que havia um corpo, que queria uma conversa. Mas não sabia bem o que dizer. Quer dizer, eu sabia que queria e o que queria, ou melhor, sabia que poderia, que viria a expressão se começasse. Confuso? (Silêncio) Eu também acho, mas aqui, vez ou outra, tudo se ordena.
Bem, pra começar, eu gostaria de dizer que eu fiquei. Vocês vão entender. Sim, resolvi ficar. Estava programado, pensado, incentivado e eu tinha dito sim, ia acompanhar, embarcar no projeto alheio com alegria. Alegria, sabe aquela que consente e a tudo diz sim com entusiasmo? Pois é. Era essa, desse quilate. Mas confesso que falhei. Perdi o trem. Minto, eu quis ficar. Eu quis. Ainda não sei bem porque, mas é que (...) eu quis ficar. E o que restou? (Pensa) O que restou? Nem sei se é de resto que eu falo aqui e agora, mas o que tenho é essa sensação de “todo o sentimento do mundo”, de que nesse liquidificador algo me é próprio e tem essa sensação gelada de solidão. Gostam de gelado? (Pausa) Fiquei aqui a desenhar, a colher impressões, a vasculhar gostos. Claro, vou falar da minha decisão de não ir, mas essa decisão é quase contemporânea desse esboço de mim. Ou melhor, foi esse esboço que, fragilmente, conseguiu dizer Não.

(alguns atores, timidamente e em variações): Não. Não. Não.
(Silêncio)
Acho que fiquei também pra me dizer, colorir com outros lápis e descobrir contornos que só é possível nesse improviso e experimentação, e isso aqui é muito do abismo que eu temia, não tenham dúvida.

(No fundo escuro do palco, outro ator desenha o esboço de uma pessoa. Música. Foco nos dois: o que diz e o que esboça)

Poderia ficar aqui fazendo mil perguntas sem sair do lugar. Nunca mais um passo. (Pausa) É difícil (Outra pausa). Quantas vezes vocês ficaram assim com vontade de não sair do lugar, de ficar esperando algo acontecer pra você ir junto, pra desaparecer no meio do tumulto ou que alguém viesse pra dizer alguma coisa e lhe dar a mão? Eu esperei. Esperei. E agora? Não vejo ninguém por perto. E soa tão estranho essa lembrança da espera no corpo.

(Pausa curta)
E o que vocês fazem quando (...) sei lá (...) não querem pensar? Não, não é isso. Quando não querem que uma dor (...) Não sei explicar. É difícil dizer que não se quer a dor ou se quer a dor. E talvez ela seja a única novidade no momento.

(Silêncio)
(Atores):
Um passo, um passo, um passo.
(Novamente o personagem-narrador)
Preciso de um papel pra listar. Gostam de listas? Eu necessito delas pra me orientar. Sim, tenho necessidade de apoio pra seguir em frente.

(Vai até a mala, também no centro do palco e retira coleções e papeis, até encontrar a lista)

(Uma das atrizes fala):
- “As listas podem ser de coisas que desejamos muito ou daquelas que queremos jogar pela janela”. O que gostaríamos de jogar pela janela hoje? Por que ainda não jogamos? E o que marcamos como prioridade pra uma vida?

(Todos vão para as malas e falam caoticamente, assim como colam estas frases no esboço):

* sorrir mais.
* andar de bicicleta.
* desejo, necessidade e vontade.
* pensar o mundo com “as coisas que lá cabem”. E cabe tudo.
* delicadeza.
* “onde está meu coração?”
* o risco.
* mais e mais encantamentos.
* “um olhar a cada dia”.
* cada vez mais a tranqüilidade no caos.
* uma nova suavidade.
* livre, assumindo as conseqüências.
* bons encontros.
* dizer mais: Não!
* não ter contornos.
* ação.

- Mas é isso. É isso. É isso o quê? O que eu quero? (Aponta para o esboço) Esse aí sou eu? O que eu quero sou eu? Está tudo junto nessa vontade? Ainda quero sorrir mais? E que vitória é essa de cada dia?

(Silêncio)

- É mais ou menos isso. Hoje é isso. É isso, viu. Um traço, uma linha, muitas voltas.

(Escuro. Foco no Esboço e nas linhas do palco. Lentamente, foco no ator que narrar em outro espaço do palco)

- Por que eu não consegui dizer isso? Mostrar isso? Por que eu sumi no sim? Eu tinha medo. Não acreditava em mim. Quer dizer, eu ainda acho que me falta convicção. Que não aprendi a falar com uma voz que fosse minha, mesmo que eu tivesse totalmente convicto, eu sempre olhava pro lado, sabe? Olhava ao redor pra perceber os movimentos de cabeça: reprovação ou consentimento.
Ele estava lá. Pra ser um guia, um condutor das minhas ações e dos meus pensamentos. E eu gostava tanto disso. Não sei quando (...) não sei quando comecei a mudar.

(Escuro)
(Vídeo com o mesmo ator que narra)

- Antes, bem antes do início de qualquer coisa: eu lhes digo que aqui, nessa escrita com o corpo, do corpo, no corpo, sou A. F.
Que posso ser Anderson, André, Antônio, Álvaro, Arthur, Alessandro, Alan, Américo, Aldo, Arnaldo, Adamastor, Afonso, Aureliano, Alencar, Alessandro.
Mas também Ana ou Alice, Amanda, Adélia, Amélia.
Não importa tanto os nomes.
Tenho 22, 28, 29, 35, 41. Também não importa tanto.
O que importa?
Há! E não é de só AMOR que eu falo. Se fosse só amor, não seria vida.

(Nesse momento, a mesma vertigem da cidade. Movimentação dos atores, ordenação das malas. Vídeo com o trecho do poema do Chacal)

de vez quando
vem um vento
ventríloquo
soprar frases feitas
na enfermaria do tempo
frases feitas
na enfermaria do tempo.
frases feitas
na enfermaria
do tempo
do tem
do...

- Claro que não foi fácil. Não está sendo. Chegar e dizer:
Aqui, está tudo bem, muito bonito, mas você nunca me perguntou se eu queria isso. Não. Eu nunca me perguntei se queria isso. Nunca um ouvido pra ouvir. E eu não conseguia ou queria ser ouvido. Talvez fosse mais cômodo esperar que você decidisse. Ou acreditar que aquelas brechas que você dava pro meu murmuro de aceite era uma conversa. Passos marcados. Na enfermaria do tempo, que eu corria pra só querer ver belezas nas danças travadas. E eram danças? Achava que podia pregar aquele sorriso que era menos. Um sorriso que eu nem sei se era meu. (Pausa) Não sou vítima, conduzi as coisas assim. Foi essa a nossa cumplicidade. Mas agora eu não consigo. Não vejo mais sentido.

Não foi bem assim que eu disse. Mas as frases estavam na vertigem de um vômito de palavras que, vez ou outra, faziam sentido. Eu queria fugir, mas queria dizer. Eu queria acusar, mas não era ele. Era eu. Era a gente.

(Voz em off): “Enfermaria do tempo trouxe um vento ventríloquo. Ou o deserto de João e Luiz”.

(Foco no ator, próximo à mala)

- O que eu tenho aqui. Uma mala. Um desenho. Um desenho e um rascunho. Um rascunho e um espaço. Um caminho e uma fala. Um corpo que desenha um desenho que é corpo. E três movimentos. Três danças. Uma decomposição.

(Escuro. Pausa. Foco no desenho ao fundo. Foco no ator ao Microfone)
(Personagem assume lugar de narrador):

“Nem parece que fui lá”
Ele, rapaz de investidas tímidas, refaz o caminho, manca e gaga, mas continua. De onde ele veio? Quem foram seus pais? Já viu o mar? Quais as suas mais guardadas lembranças? Ele lembra pouco. Tem pouco a dizer do que fez. Mas falava, falava, diagnosticava, resumia o mundo. Muito casaco, luva pra se proteger ao mesmo tempo em que dissertava sobre os sentimentos dos outros. Tudo por uma não afetação.
E de repente, uma saudade:
Mãe, escola, tardes sem fazer nada deitado na cama, sessão da tarde, conversas ao telefone, os sábados de esperança e a gostosa ansiedade dos domingos, caminhadas pra pensar, a gargalhada solta. E tinha aquilo que não sabia, ou sabia, mas não sabia mais do que um sabia vago.
Da família pouco sabia, que também pouco sabia dele. Seguiam em canoa e em silêncio. O que se dizia era de um ping pong pra constar.
Encapsulados, pensou um dia. Mas acha que ELA sabia mais, chegava mais, conduzia mais e protegia mais. Era o seu conforto.
Mas depois que ela se foi (...) ficou de pernas bambas.

(Volta pro palco)

- Eu era pra nós. Um nó aqui em nós. Somente nós. Amarrado no vínculo. Agora eu percebo.

(Atores de outras cenas, de modo disperso, brincando com elásticos)

Não gosto da palavra nó.
Nó é algo que aperta,
que prende linhas,
que não se abre,
que, atado, amarra, ao invés de esparramar.
Lembro que aprendi a dor nó de marinheiro.
Hoje me ocupo em desatá-los.
Desfaço, desato
e desabo em nós.
Mas nó também lembra 'nós',
lembra 'junto'.
Preciso de nós,
como preciso de barco sem rumo,
de leme à deriva,
de árvores ao vento,
de raiz,
de chão.
Eu ainda desato nó,
mas já é um rumo.
Os outros, o mar levou.
(Em cada braço de mar, há um pedaço de nós. Em cada enseada, um abraço.) [1]

(Simulando um andar em corda bamba)

- Nessa história, fui tão arremessado pra frente nas intempestivas. E era bom. Achava que era paixão. Gostava da desorientação, de não saber o que estava fazendo. Logo eu, o super certo, o sempre racional. Fui achando que bastava a convivência, que a relação era o que importava (...) o recheio a gente mexia até chegar no ponto. Da aproximação, sempre com pouca conversa, e muita fábula aqui, tudo parecia que acontecia: peles, peles, presença. Eu achava que mudava. Passávamos muito tempo juntos, sem que houvesse muita afinidade, muito que dizer. E era bom. Fumávamos bastante nessa época, principalmente nas tardes em que ficava sozinho em casa. Ríamos de tudo: dos desenhos animados, dos objetos que minha mãe comprava nas feiras de antiguidade e que acumulava na mesa da sala, dos livros que mostrava pra ele, das tentativas culinárias quase sempre frustradas. E nada mais importava. (Pausa) Falei de peles, de presença, mas havia sempre os nós, os enguiços. Era um querer e nada de pontes, somente fagulhas, pequenas intenções, movimentos fugidios. Pois ali, a conversa era ainda mais difícil. E eu fabulava uma paixão juvenil. Acho que ele também. Tinha algo que eu insistia em dar nome, mas sempre faltava um bom encaixe.
(Pausa)
Sabia pouco dele, só que ele morava no mesmo bairro com o pai.
Acho que ele me considerava um cara estranho e ficava curioso. Eu, apostava as fichas. E dali filmes, livros, cigarros, tardes, algumas palavras, um estranho silêncio.

(Encerra o percurso na corda bamba. Escuro)

Cinco anos.

(Foco no ator ao microfone, o mesmo ator): Como o mundo seria se fossemos mais atentos? Sim, atentos, não eu ou ele. Nós. Se a gente realmente colocasse a atenção como meta de vida? Do que daríamos conta? Quem culparíamos?

(Volta ao rabisco no fundo do palco, um pouco intrigado)

Engraçado como só agora me recordo do começo. Teve um momento em que me esqueci, me perdi daquele entusiasmo inicial, daquela curiosidade, daquela sensação de estar vivo. Sim, eu me lembro: cantava o “muito que eu li, pouco que eu sei”, com a alegria da superação. E não sabia direito pra onde ia, mas me achava tão remador, tão condutor, mesmo com as amplas zonas de silêncio, de acesso impedido, e que eu não tinha noção do tamanho. Tinha, achava, todo o tempo do mundo.
Olhar meu corpo hoje, as minhas mãos: que carregam malas, que apertam outras, que desenham e carregam guarda-chuvas, é a mais pura novidade.
Qual o corte do cabelo, que roupa usar, o que recusar, o que não quero mais (...) está tudo possível, ainda que tímido, naquele desenho, naquela mala, nesse passo.
Quando a gente pensa que a vida passou sem passar pela gente, que movimento devemos fazer pra que entremos nela, ou que ela entre na gente, sem medo, sem receio?
Medo. (Riso tenso) O medo é o meu casaco. Onde o deixei? Medo, medo, medo. De ficar sozinho.
E olha eu aqui, olhando ao redor.
(Volta a ri. Pausa) Cadê o meu gosto? Não consigo perder de vez a idéia de não ter conseguido. De ter fracassado. Isso ele disse: “é você que não está bem, precisa se cuidar. (...) Não posso fazer nada se você não dá conta”. Vai continuar dizendo que eu não dei conta, que eu sou o fraco, que tento explicar tudo pra não fazer. E eu recuo, aceito. (Silêncio) Sempre foi assim. Não sabia direito o que eu queria. Tinha sempre uma sensação de que estava tudo bem. Que estávamos felizes.
(Pausa) Mas, no fundo, eu duvidava. Eu queria ficar protegido, mas sabia que (...) às vezes, não tinha muito sentido pra mim.
E, quando eu comecei a arranhar um não, fiquei perdido e tinha mais clareza que estava botando tudo a perder. Que aquele vínculo forte estava se rompendo. E cadê o chão?

(Pausa. Se movimenta pra frente, como se fosse fazer uma confissão)

(Pausa) Outro dia li a descrição de uma pessoa: “Nele a vida era evidente”.
O que era evidente em mim sumia na afinidade.

(Microfone, outro ator):

E é nas elipses que a narrativa transcorre. Zonas de silêncio. Ele intrigado e no caminho. O fato é que havia um aprendizado naquilo que era muito intuitivo, mas também pesado pra que pudessem falar. O discurso (...)

- O meu discurso!

(Microfone, outro ator)

(...) o seu discurso sobre o afeto passava longe daquele movimento que não tinha receita. Ele seguia. Os corpos seguiam, havia exploração e acomodamentos. Uma forma peculiar de testar limites e um mundo particular, isolado nos rituais de fumo, peles e gestos expressivos no contorno sério daquilo que não conseguiam falar.

(Atores): E os tempos na suas operações: proximidade, distâncias, desbundes, pequenos rompimentos, traições, dependências, voltas, partilhas, outras proximidades, intimidades, outras dependências, costuras, traços, pontes (...)

(Foco no personagem-narrador)
- Havia passado um ano após a morte da minha mãe. Inevitável falar disso aqui, por que foi marcante e coincidiu com o movimento que já tínhamos começado de maior afeição. Mas foi aí que (...) eu acho que eu via a “evidência” de vida nele. Trabalho, afeto, corpo, presença. E eu havia perdido o ônibus. Era essa a impressão. Outras zonas silenciosas estavam lá mas, por outro lado, percebia um movimento intenso que pedia ação. Água represada pedindo passagem. Havia uma proposta, ou melhor, uma inclusão pra seguir a correnteza. Era estranho ver aquele corpo cada vez mais visível que corria pra dançar de qualquer jeito.
Diante do movimento, minha paralisia. E eu insistindo em bater cabeça pra acabar com o silêncio, ainda querendo que as palavras se encaixassem no que sentia e vivia.
Ele foi, planejou, se expôs como eu nunca havia visto. Muito cuidado e atenção. Eu estava em frangalhos.

(Pausa)

Naquele momento, éramos companheiros. Sentia raiva, inveja, amor. Estranha essa mistura?

(Pausa)

Também sentia raiva da minha mãe.

(Outro ator ao microfone, sendo conduzido e interrompido pelo ator-narrador, lê a carta):

Uma querida amiga assim falou: “devemos transformar a nossa dor (...) quem sabe em arte, mas elas devem sair da gente (...) ir pro mundo”. É curioso, mãe. Ainda não conversamos depois daquele dia, já que, confesso, tive medo e vergonha. Sim, vergonha, pois desejei a sua morte, sabe? Não de uma maneira explícita, deliberada, óbvio que não. Mas acho que houve um emaranhado de sentimentos, em que cansaço, tristeza e fragilidades (minha e sua) trançavam uma rede difícil de estender. Medo, talvez o mesmo que me acompanhou até agora, e me calou. Era como se não falar e não pensar me eximisse de um sofrimento, me trouxesse uma paz assentada no conforto de posturas bem ensaiadas (papeis avulsos do sofredor, da vítima das circunstâncias). Só que, bem dizia o poeta: as coisas não têm paz. E é no compasso do incomodo, das intensidades que cismam dançar em mim que lhe resgato, lhe encontro e me despeço. Acho que essa carta pode até soar como um acerto de contas, no entanto, está mais pra uma homenagem e um delicado acomodar: da saudade, da sua presença em mim (inspiração e repressão). Hoje, ao lembrar de você, tenho a impressão de que não tenho mais claro o seu rosto, são múltiplas imagens de tempos diferentes, provavelmente significativos. É uma mãe que se multiplica, ou se fraciona, com várias vozes e uma presença que oscila entre o esfumaçante e o denso: por vezes, esfinge. O seu cheiro e seu calor, no território sutil da lembrança, permanecem intocáveis, e acentuam uma vibração que lateja o corpo. Tantas coisas para dizer, que é preciso organizar as palavras, as orações, os períodos. No fundo, lamento muito o que não disse, o que não agradeci, o gesto carinhoso que não consegui expressar, a palavra, a explicação, a conversa ... .

- Ele foi presente e eu aceitei a segurança, e um não mais querer saber o significado do gesto. Confiava totalmente no construtor de prédios. E, ele, cada vez mais graduado em ir além dos prédios, em áreas de lazer, convivência, jardim e pontes. Eu, olhava pela janela, nas brechas da cortina. Com um medo danado de perder.

(Novamente acrescenta elementos no desenho ao fundo. Depois se volta para o centro do palco)

E eu seguia o caminho bem ordenado: estudo e adequação. Nem a novidade da faculdade me levava à autonomia. Claro que exercitava sempre o discurso teórico ao falar dos outros, dos casos alheios, das posturas, das sensações dos outros, mas não via aquela “evidência” em mim.

(Microfone, o mesmo ator):
5 anos, 3 meses e 14 dias. Idas e vindas, mas sempre lá.

- “Nem parece que foi ontem”. Nem parece que fui lá. Até que ele apresentou a viagem, a oportunidade de estudo. Era o projeto. Tentei adequar a situação, ir também. E a organização e o planejamento ocuparam aquele mistério de antes, que já havia sido ocupado pela farra, pelo desbunde, pela gritaria pra dizer, pelo conforto. Era pra ser, diziam. Tudo certo, diziam. Que engajamento, que vinculo, também diziam. (...) Nem sei direito onde foi que (...) nem como consigo hoje (...) aquele ali (Aponta para o esboço). Aquilo ali foi uma façanha.
Parado com uma mala na mão e a outra que não conhecia e que apertava (...) não conseguia. Não conseguia. Era medo? Era o que? Ia romper demais? Não sei. Não sabia o que dizer. Pela primeira vez, não tinha um discurso pronto, uma frase de efeito. Era uma paralisia. É.
Ainda estou aqui, sem saber pra onde vou, sobre o efeito daquele NÃO.
Não sei mais o que falar. Isso é apenas o que sei de mim. Ali, aquela façanha talvez não seja obra do medo.

(Pausa)

Nem lembrava daquela carta.

(Pausa)

Acho que nós dois sabíamos que não dava mais. Que aquela costura tinha que acabar. E eu tô perdido. Fudido. (Pausa) Voltar pra onde? pra que?

(Sons da cidade)

- Não há nova suavidade agora, e sei lá das pequenas esperanças. É a mesma sensação de abandono (...).

Não era a viagem, nem ele.
E a partir de agora, (aponta para o esboço) somos nós.

(Foco no esboço e no ator. Voz. Luz apagando lentamente):

Um dia sonhei que podia atravessar essa ponte. Sonhei que os passos eram dados com segurança, que minhas pernas não tremiam. Que até podia olhar pra trás, sem medo, nem busca de aprovação, algo como: - vá sim, você merece ser feliz. Um dia sonhei que a decisão não estava sustentada em frágeis bambus, que a força era mantida por um desejo elaborado.
Um dia sonhei.
Mas ainda estou aqui. Sigo devagar, dando voltas. Às vezes estaciono. Em outros momentos percebo que a ampliação dos contornos se dá devagar, quase imperceptível a olho nu. A alegria roça a minha pele, mas, arredia, insiste em firmar o desapego. Eu já não lamento.
Recolhido, em danças que só eu percebo, por se darem em uma esfera íntima e inacessível, ouso movimentos de força que julgava impossíveis. Voltas, deslizes e aberturas compõem quadros sem molduras, cartografias sem limites nesse meu devir-bailarino.
Em um contato improvisação, contato improvisação.

***
[1] DESATAR, ADRIANA MONTEIRO DE BARROS.
- Texto é parte da peça Pequenas histórias de trocas de pernas, peles e olhos nos seus arroubos e arredores (Anderson Feliciano e Mário Rosa)

domingo, 21 de novembro de 2010

Leonilson e Caio - aproximações afetivas


"Então, que seja doce. Repito todas as manhãs, ao abrir as janelas para deixar entrar o sol ou o cinza dos dias, bem assim: que seja doce. Quando há sol, esse sol bate na minha cara amassada do sono ou da insônia, contemplando as partículas de poeira soltas no ar, feito um pequeno universo, repito sete vezes para dar sorte: que seja doce que seja doce que seja doce e assim por diante. Mas, se alguém me perguntasse o que deverá ser doce, talvez não saiba responder. Tudo é tão vago como se fosse nada (…).” (Os Dragões Não Conhecem o Paraíso)


segunda-feira, 15 de novembro de 2010

o malabarista ...

(Foco de luz sobre quem diz o texto. Em pé.)
- “Um malabarista de um trapézio de metal se jogando pra morte”. Foi assim que me vi naquele dia. (curta pausa) E ele nada de promover rapidamente uma rede de proteção. (curta pausa. olha pra cima) Estatela é o pedido do chão. Estatela é o pedido da (...). Não, não quero aqui lamentar o que houve, adocicar ou tentar contar uma historinha praquilo que rasga a linguagem. Outra política? Sei lá. Eis que aqui me encontro e ficarei por muito tempo, entre a saudade e a vontade regida por um automatismo estranho entranhado no corpo. Vontade regida? Novamente, sei lá. Algo pede a repetição. Algo sente que não há repetição.
(Longa pausa. Iluminação oscila: foco e “desfoco”.)
- O malabarista não teme a morte. Talvez nem pense nela ou, quem sabe, a tenha como companheira. O malabarista gosta é do risco que dá a altura do trapézio. O malabarista prefere ficar ali e, com ele, voar. Com ele o malabarista se permite muita coisa. Ele é uma espécie de encorajador e também o companheiro do malabarista, que não pensa na morte. Com ele o malabarista esquece o pedido do chão. Com ele chão é convite pra dança depois do pouso. Com ele não há pouso nem paragem.
Com ele (...) ELE. (pausa) Mas há números forçosamente solitários.
(curta pausa)
E agora? Não há movimento? Nem dança? Nem companhia? Nem ilusória segurança? O pedido do chão retorna ao trágico “estatela”?
Foi assim que me vi naquele dia. Com receio da altura, uma vontade no corpo, que não sabia se era saudade, e uma angustia de tanto chão.
O malabarista encontra seu medo.
“Um malabarista de um trapézio de metal se jogando pra morte”. Respira fundo (...).

domingo, 7 de novembro de 2010

fazendo cena

“dos nossos planos é que tenho mais saudade”
(ele e ela. não importa quem comece)
- a mesa.
- mesa?
- é sua. não lembra?
- não.
- sua mãe lhe deu, parece que ela (...)
- depois eu arrumo um jeito de levar. pode ficar aqui, né?
- pode. (...) me avisa quando vier buscar.
- por quê?
- pra saber.
- tá. (...) não tava pensando nisso.
- (...)
- você tá bem?
- estou.
- é. eu também vou levando.
- tenho saudade (...)
- eu também.
- (...) de muita coisa.
- também.
- sinto muito.
- (...) é (...)
(...)
- outro dia eu fui comer um peixe no joão. me lembrei demais de você.
- o peixe do joão! me deu água na boca agora.
- foi num domingo.
- final de tarde, com cerveja.
- e paulinho da viola. que ele tocou pra mim lindamente.
- ele tá sabendo?
- não comentei. mas ele me deu umas canções, quase abraço.
- é o joão.
- ficou olhando um tempão. acho que queria dizer alguma coisa, mas não veio até a mesa como sempre fez.
- (...) fui pra serra ontem.
- foi por isso que liguei pra cá e ninguém atendeu.
- cheguei no inicio da noite. vi a sua ligação.
- pensei em vir depois do almoço.
- cachoeira. a de sempre.
- dos sonhos!
- é. das decisões também.
- das comemorações.
- não. dessa vez (...)
- eu preciso voltar lá. quero saber o que sinto agora que não estamos mais.
- (...) e o trabalho?
- corrido. agora tá tudo burocrático. e um pouco chato. mas não sei se é isso. (...) talvez volte a ficar estimulante.
- fechei dois contratos.
- bacana. (...) mudou o sofá de lugar?
- não. sempre esteve aí. acho que a nair mudou foi o espelho de lugar
- e ela?
- bem. outro dia disse que sentia falta da conversa aqui em casa, e dos risos também. (...) com aquele jeitão dela, de pouca conversa, falou que tava tudo muito silencioso. imagina?
- (...) eu tô acabando de ler o ruffato. deixo na portaria.
- (...)
- (...)
- quer mais água?
- (...) o que?
- você fica bem de azul.
- cortou o cabelo?
- já almoçou?
- (...) (...) por quê?
- (...) eu não sei mesmo. ficam aqui martelando: “por quê?” e “e agora?”
- quer dormi aqui?
- acho que quero, muito. e amanhã (...).
- amanhã (...)

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Sem Manual

Sem manual
(Foco apenas no seu rosto)

- Ei? Sim, você aí. Poderia me ajudar aqui com o braço? Cansei dessa posição. Assim, deixa caído. (curta pausa) E poderia coçar o meu joelho? O esquerdo, por favor. (curta pausa) E poderia me virar de lado? Que lado? Você escolhe. Obrigada. Você sabe das coisas, heim. Sabe como tratar uma (...) uma (...) UMA. (pausa) O que mais você acha que seria bom pra mim? Diga alguma coisa. Alguma coisa pra gente começar a conversar. Espero sua condução. (pausa) Gosta do silêncio? Eu ainda não sei do que gosto. (curta pausa) Bem, talvez eu goste de ficar aqui, vendo gente passar, parar, olhar, às vezes tocar (...). Não quer? Fica mais um pouco, eu estou lhe pedindo. Sou uma ótima companhia. Posso me calar se quiser e até (...) sei lá. (pausa) Sabe o que é uma gueixa? Nem imagina? Não, não é bem isso, digamos que tenha uma conduta razoavelmente diferente. Mas por que é que eu lhe perguntei isso? (tenta lembrar, olha fixamente pro lado. longa pausa) Ei, lindo dia, não? Nesses dias de sol a pino, gosto de vir pra cá (pausa) pra essa praça. “Como ela chegou aqui?”, você deve estar se perguntando, não é mesmo? Contei com a solidariedade de estranhos. A solidariedade de estranhos, essa é boa. Onde li isso? É, ando com a memória curta. (curta pausa) Mas vem cá, você vem sempre aqui? Eu, principalmente aos sábado. Corro da vida e venho pra cá. (repentinamente) Você não quer me levar? Rindo do que? Eu que estou pedindo. Poderíamos continuar a conversar lá. Lá? Lá! Lá? O que tem lá? Poderia até mesmo permitir que testasse meus limites. Continua rindo. Há algo de estranho no que digo? E Por que olha tanto para os lados? Olha pra mim! Sou eu que estou falando com você. É fato, verídico. (pausa) Desculpe se me apressei nas resoluções. Sempre ouço: você está sempre atropelando o mundo com essa, este (...) ESTA. (pausa) É que não sei direito o que quero, ou o que posso, além de pedir. Acho que já lhe falei disso. Bem, deve ser defeito de fabricação. (pausa) Você poderia cruzar as minhas pernas? Com cuidado, assim mesmo, você aprende rápido, heim? Obrigada. Vejo que está mais relaxado, e confiante. Por que estranho? Não há nada demais. (risos) Olha, já não preciso mais de ajuda. Isso quer dizer que não precisa tocar. (pausa) Acho que sim, não vejo problemas. Talvez seja mesmo por aí o caminho, mas vejo um sinal vermelho adiante e não sei precisar o tempo de sua permanência. Não, não, eu não pedi. Por enquanto está tudo bem. Quem eu sou? Ué, sua casual companhia (curta pausa) neste dia ensolarado, sábado de promessa. Gosto de vir aqui, e nem sempre tenho a oportunidade de um bom encontro. Mas me fale de você? Casado? Filhos? É mesmo? Quantos? Menina? Que alegre! O convite? Que convite? (Curta pausa) Pois hoje, antes de sair fiquei na dúvida se deveria trazer o guarda-chuva. (pausa) Nunca se sabe, apesar da solidariedade de estranhos. (pausa) E estranho agora é o seu olhar. Veja os ombros daquele (...) daquele (...) DAQUELE! “Sério, sisudo e implacável”. (pausa) Conheço sim. Nos vemos sempre, mas falta afinidade. (pausa) Acho que afinidade é uma questão de ângulo, quando a mirada é próxima e há alegria na troca. (pausa) Ele é um tanto empedernido, mas gosto de ficar olhando pro contorno dos seus ombros. Deixa pra lá. (abrupta) Me diz uma coisa bonita? Ué, qualquer coisa que me faça ficar feliz. Que você costuma dizer pra sua mulher. (curta pausa) Você diz isso pra ela? E ela gosta? Entendi. Pode ser que, nestas ocasiões, eu também gostasse (pausa, pensativa). Outra coisa! Diz outra coisa. Ué, tenta, mas diferente. Procure lembrar de algo da época em que você acreditava. É acreditava no (...) (curta pausa) Só isso? Tá. (curta pausa) Então me dá uma flor. (pausa) É o que você (...) (pausa) Não sei se gosto. Pode ser. Já fizeram sim: torceram, forçaram, apertaram (...) achei que fosse quebrar. Eu só me perguntava quando ia acabar, mas não foi um suplício. Já lhe disse que não sei (...) deixa pra lá. (curta pausa) Está cada vez mais vazia. Quantas horas? Fiquei aqui falando, falando. (pausa) Vez ou outra “a tristeza insiste em se intrometer”, onde foi que ouvi isso? “A tristeza insiste em se intrometer”. Eu agora sei dela, objeto identificado. (aumenta o incômodo) O que faz da vida? E gosta? Sei como é. Há quanto tempo? Eu? Venho pra cá. Algumas vezes, não somente em dias como estes. E você? Por que vem pra cá? Pra onde? Não. Mas vou precisar da sua ajuda. Espera aí. Já disse pra esperar. Eu não pedi. É só quando eu peço, entendeu. Não. Não. (escuridão ou perda e foco) Por que é que (...) (longa pausa. impassível) Quando eu peço é quando eu quero? Não sei. Qual o nome dela? Da sua filha, qual o nome dela? (pausa) Eu te disse que a engrenagem era outra. Não? Não tenho porque dizer coisa alguma. Não quero dizer nada. Se cuida pra não jorrar e estanca (...). Não sei e nem me interessa. Agora não me interessa nada. (pausa) Vai. Só sinto um pouco de cansaço com todo o previsível. Não sei. Eu não sei o que eu quero. Mas posso pedir. Um pedido que é também um sim. Um sim da vontade, eu acho. (pausa) E o buraco é mais embaixo.

domingo, 31 de outubro de 2010

domingo, 3 de outubro de 2010

Ruínas do Castelo

(Personagem sentado à mesa de alguma repartição. Ao fundo, um grande armário de metal; sobre a mesa, pastas e papeis. Foco, fala como se estivesse palestrando, mas há algo de estranho na sua exposição.)
- Vejam bem. (Se concentra) É um prédio de arquitetura moderna, com seus corredores amplos, suas formas angulares, espaços vazios e áreas verdes. Há trinta anos. (Pausa. Um pouco confuso. Retoma a fala) Trinta anos de uma fixação redentora no miolo da periferia. (Levanta-se, postura solicita) Querem alguma coisa? Posso ajudar? Por ali, senhor. Agora não há ninguém que possa fazer este serviço; somente depois do almoço. Sim, pode esperar. Já, já eu carimbo. Precisa anexar o comprovante de residência. Pode deixar que eu reproduzo. Sim, eu reproduzo. (Senta-se. Pega um carimbo e apressadamente carimba vários documentos de modo mecânico) O ideário da época de sua edificação entoava a voz do progresso e de um vai pra frente para poucos. E assim foi adornado e repaginado o monumento, oscilando nas propostas e pegando carona no barco de nossa combalida democracia. Grande castelo nas cinzas da história: concorrido, bem freqüentado, democratizado, analisado, mitificado. Balança mas não cai. (Olha as rachaduras. Vai até uma delas e averigua com atenção. Retoma a fala) E aqui estamos, entre o passado e este “alvissareiro” presente. A estrutura é frágil, com rachaduras expostas e pouca sustentação na base. No entanto, há um misto de cegueira e fé, com incrementos de cinismo, que empurra os dias e justifica as ações. (Pede um cúmplice silêncio) Mas isso ninguém pode saber. Por aqui tudo faz sentido. Tudo é importante. “Relevante”, é como gostam de dizer. Eu também já concordei e ressaltei muito esta “relevância” e, quando convém, ainda faço uso. Faz parte do jogo. (Abre as gavetas do armário e retira pilhas de papel, que coloca sobre a mesa. Respira fundo) Carimbo, recorto, colo, copio, desenho, entrego documentos, recolho assinaturas, encaminho listagens, fiscalizo e repasso recados com muita eficiência. Sou bem útil aqui. É verdade, bem útil. Imprescindível. Às vezes até me esqueço do estremecimento do castelo, e quase me convenço que o percurso é de calmaria. (Pausa) Calmaria e um barco há muito tempo ancorado. Bela imagem. Até onde conseguiremos ir? (Pausa) Chego também a duvidar que os ruídos se devam as rachaduras. Talvez seja apenas uma acomodação (Pausa) dos desencaixes. É (...) o buraco pode ser mais embaixo. (Pausa) Elas sempre estiveram aqui. Sim, as RACHADURAS. Eu bem que mostro pra pessoas, mas a maioria nem dá bola. Vocês conseguem ver? Eu meço, diariamente, sempre que chego. E tenho aqui uma tabela, um gráfico e uma análise criteriosa da tabela e do gráfico (Retira do armário um calhamaço e um gráfico de proporções gigantes) que se detêm sobre as variações de crescimento das rachaduras. (Ao olhar os dados, justifica) É preciso atualizar meus dados, sabe? Porque nos últimos anos a curva de crescimento foi bastante expressiva e ainda falta concluir alguns experimentos. (Detidamente, usa uma canetinha pra desenhar “rachaduras” na parede) Crescimento exponencial. Crescimento exponencial. Tem também um dossiê sobre uma rachadura específica, excepcional (Para o desenho) de um crescimento atípico. Mereceu uma pesquisa aprofundada, um tratado sobre a fenda. Ainda pretendo publicar esse material. (Pausa) Eu me pergunto sobre a melhor maneira de se conviver com esta, essas, estas (...) fendas, e o que é possível fazer, ou enxertar, pra manter minimamente um “equilíbrio delicado”. Mas acho que estou falando demais. (Longa pausa. Senta-se sobre a mesa e utiliza um binóculo). Um passeio por seu interior, hoje em dia, revela algo que surpreende. Pessoas em vários pontos do prédio com olhares, com expressões, com gestos, com passos (...). (Observa. pausa) Curioso, muito curioso. (Levanta-se. Retira da gaveta algumas fotografias. Coloca algumas sobre a mesa e prega outras nas paredes próximo ao desenho das rachaduras) Não se sabe bem o que fazem. Alguns vagam, outros permanecem imóveis em algum canto ou mesa estrategicamente colocada no sentido de aparentar alguma eficiência. Eles chegam pontualmente, como os outros profissionais ainda em ofício, e compõem o grande mural que adorna e reforça o zelo pela moralidade do grupo a que servem. Não, eles não estão em ofício. Estão em desvio. (Em movimento corda bamba, ainda com binóculos) Daí os olhos, a expressão, os passos. (Pausa. Novamente “ao carimbo”, meio catatônico. Parado) Antigamente, isso aqui era diferente. Não tinha (...) era (...) a gente podia (...) eu conseguia (...) hoje é só (...) eu não consigo (...) Posso, posso (...) Me pediram pra (...) pra (...) Tenho que perguntar (...) Colorir as rachaduras? (Muda drasticamente, ocupando outro lugar no espaço) Mas é isso mesmo, eles não têm autoridade. Você não ouviu o que disseram. Eu já falei que não vou fazer, não foi pra isso que me formei. É humilhante. Estou sendo perseguido aqui. Não vê como ela me olha? Hoje nem me cumprimentou. E passou por mim duas vezes. Pra falar a verdade, eu só aceito fazer quando eu me simpatizo com a pessoa, já estou fazendo até demais. Não pode entrar por aqui não. Você vai onde? Falar com quem? Qual o assunto? Identidade. Assina aqui. Olha, vai esperar um pouquinho. (Retoma à mesa) São tratados com certa indiferença e, nas acaloradas reuniões, permanecem alheios e nunca são citados. Sim, no pacto explícito em que certo “saber”, ação e sentido são as ferramentas de trabalho e armas de guerra, não há espaço pra eles. Afinal falta ali A ação, falta O senso e A segurança, falta uma idéia bamba de Saúde e o “Conhecimento” não encontra o canal de uma consentida expressão. (Pausa, novamente um convite cúmplice) É por isso que eu falo, e muito. Falo pelas rachaduras. (Pausa) Entre o que se desconhece, o que se conhece, o que se diz conhecer e o que se negam a conhecer estrutura-se isso aqui, o frágil castelo. Eles (Cúmplice), os zumbis, também chamados desviados de função – desviados, isso mesmo que vocês ouviram – vão ultrapassar o número dos que se ocupam (...) (Curta pausa) “os com função”, que se ocupam com algo considerado de MUITA utilidade e cheio de sentido. Eles (Cúmplice), os desviados, ficam por aí, reduzidos a um diagnóstico que atesta a inadequação, realizando pequenas atividades imprescindíveis, imprescindíveis. (Pausa. Adquire movimentos mais lentos e melancólicos. Procura arrumar a mesa, sem sucesso. Vai, após tomar algum medicamento, lentamente até uma das rachaduras. Observa. Retoma) São, na sua maioria, silenciosos, ofegantes e balbuciam frases que poucos compreendem. Vocês estão entendendo? Tento rastrear suas histórias e acompanhar as curvas de crescimento deste grupo. Muitos falam por eles, mas eles (...) pouco dizem. (Pausa) É também por isso que eu estou aqui. (...) (Retira da gaveta e cola em seu corpo pequenos papeis adesivos com palavras “moralizantes”: dever, moral, sentido, direito, respeito à diferença, fé, conservação, poder, lei, organismo, cuidado, limite, saúde, deus, organismo.) Só um momento, por favor. Ainda não abrimos, senhora. Como pode? Esse comportamento é inadmissível. Não condiz com este espaço. Isto aqui é uma família, uma família. Temos que nos defender e nos proteger. Mas, principalmente, temos que cuidar. Amor e fé! Paz e conservação! (Foca nos papeis e nas rachaduras. Pausa) Eu também estou com as mãos metidas nesse “negócio da administração da vida”. (Pausa) Quem não está? (Pausa) Os desviados? Não conseguiram escapar, muito antes pelo contrário. (Pausa) O que eu fazia? Bem, eu nem me lembro. Será que eles se lembram? (Pausa) E o nosso exército só faz aumentar. (Retira outras fotografias da gaveta) Ainda vamos ocupar todo esse castelo, antes do desmoronamento. (Retira mais pilhas de papel do armário. Pausa) E mesmo depois, já enterrados, assumiremos nosso lugar imprescindível. Imprescindível. Estamos sendo treinados pra isso. Pro deslize na plataforma desses corredores cheio de justificativas. Afinal, é aqui que vamos ficar. Sempre aqui. Pregando estas máximas em seus descendentes, definindo esse caminho estreito, sem clareiras. Mas eu não deixo de falar. (Pausa) E oriento também, cumpro o meu dever aqui. (Pausa) E meço as rachaduras do castelo. (Pausa) Avalio a profundidade da âncora. (Pausa) E bocejo. Vou esperar aqui, antes de tudo ruir, (...) pregando sentido (Uma piscadela enquanto some nos adesivos e nas pilhas em cima da mesa. TOCA O SINAL)

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Visita ao Zoológico

Nos últimos anos tenho visto com entusiasmo as propostas teatrais que procuram romper com a perspectiva ilusionista e ir um pouco mais além, a partir da exposição da engrenagem cênica e do instigante processo de busca por uma expressão renovada. Como diz Orides Fontela, “revelar o brinquedo ainda é mais brincar”, e é dessa possibilidade que expõe, discute e reafirma o pacto da criação e do jogo (reinventado) que ando atrás. Talvez por isso tenha me entusiasmado tanto peças como Ensaio Hamlet, Gaivota – Tema para um conto curto (Cia. dos Atores e criação de um grupo de artistas filiados às investigações da Cia. dirigida por Enrique Diaz, respectivamente) e Aqueles Dois (Cia. Luna Lunera), por tudo que apresentam de um estranhamento constantemente renovado, de uma criação e sua concomitante desconstrução, de uma polifonia em que se insere o embaralhamento entre personagens e atores, e de uma apropriação efetivamente criativa dos que estão lá, no palco, vivos na mais expressiva potência.
Mas eis que aparece Zoológico de Vidro e reafirma o teatro também na sua forma aparentemente “tradicional". Nessa mirada, não importa tanto as perspectivas ou elucubrações entre teatro dramático ou pós-dramático, mas o entendimento de que a expressão artística deve encontrar seu canal e formular questões independente dos rótulos a priori, já que o “experimental” pode nada efetivamente experimentar.
A montagem do Ulisses Cruz para o texto de Tennessee Williams consegue erguer um mundo no palco. Não dentro de um esquema naturalista, edificando o ilusionismo. Mas contando uma história com o jogo teatral quente, entusiasmado, em um belo movimento que aproxima tradição e modernidade.
Quando questiono aqui o uso de termos depreciativos, como “tradicional”, estou considerando que a boa obra é a do seu tempo, das formulações do seu tempo, das propostas do seu tempo, do “porvir” do seu tempo. E, nesse caso, longe da fossilização do texto e de uma encenação reverenciosa, o que vemos é um movimento de pensamento sobre a cena que se realiza quase que invisivelmente, estando aí seu maior mérito: não há uma demonstração do conceito, há experiência de corpos que pensam e elaboram artisticamente a partir de certas escolhas e parâmetros.
Nesse sentido, dramaturgia e encenação conseguem caminhar em diálogo profícuo, evidenciando inteligência na criação, seguindo com êxito a proposta de valorização da memória, orientadora do discurso (que vira imagem) do narrador, e do peso dos encontros nas ações (e/ou inações) dos personagens.
E o que temos no zoológico? Uma família conduzida pela forte presença de uma mãe que a tudo domina; filhos que não encontram autonomia, refugio nos sonhos; frustrações e impulsos de revolta abortados; encontros em baixa potência; e a narrativa de um dos integrantes da família, que revela, com desapontamento, frágil esperança e amargura, “sua versão dos fatos”. Essa pode ser a mirada ou a lembrança do enredo da peça. Não poderíamos dizer simplesmente o enredo, pois esses apontamentos se apresentam a partir de um filtro do que foi visto, do que foi possível ver do encenado.
Talvez esteja aí o que considero digno de nota: há uma história e, em paralelo, há (por vezes num campo virtual) um diálogo com os criadores e com as memórias (muitas) que percorrem todo o tempo da peça. Como se, para além da demonstração de um procedimento, pudéssemos perceber a expansão de um campo de expressão amplo que ultrapassa o visível. Mas isso acontece em toda obra? Acredito que não. Em alguns trabalhos somos apenas conduzidos pela fábula ou, às vezes, apresentados aos dispositivos que ressaltam o processo, mas que nos fazem, aqui e ali, duvidar que este mesmo processo faça parte de um diálogo entre propostas, idéias, procedimentos e criação.
E, no caso da montagem de Ulisses Cruz, há uma comunicação que não se frustra, pelo contrário, levanta questões sobre os caminhos escolhidos, as linhas de comunicação (entre várias possíveis) e a articulação entre os elementos artísticos em cena e a dramaturgia de Tennessee Williams.
O eixo organizador da peça são as reminiscências de Tom (Kiko Mascarenhas), o filho que reconta a história da família. Nesse caso, ele figura em um naturalismo de quem vive o drama e, por vezes, se distancia ao narrar. Os outros personagens são projetados pelo narrador em um plano mais expansivo, ressaltando posturas variáveis: do autoritário ao patético, passando pela extrema fragilidade e pela solidão. É interessante observar o trabalho de Cássia Kiss (Amanda Wingfield, a mãe) e Karem Coelho (Laura, a filha) ao optarem em fazer de suas personagens também projeções de um olhar amargurado. Força, lamento e excesso que sufoca; insegurança e fragilidade (...) atuações inteligentes e sensíveis. Completa o elenco Erom Cordeiro (Jim) em um papel ajustado no filtro da memória que traz a possibilidade de um mundo para além das paredes da casa da mãe.
Enfim, uma obra que, após tanto tempo desde a apresentação em Belo Horizonte, ainda reverbera aqui.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

alegria - arnaldo antunes

Eu vou te dar alegria
Eu vou parar de chorar
Eu vou raiar o novo dia
Eu vou sair do fundo do mar
Eu vou sair da beira do abismo
E dançar e dançar e dançar
A tristeza é uma forma de egoísmo
Eu vou te dar eu vou te dar eu vou

Hoje tem goiabada
Hoje tem marmelada
Hoje tem palhaçada
O circo chegou

Hoje tem batucada
Hoje tem gargalhada
Riso e risada
Do meu amor

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Viajo porque preciso, volto porque te amo.


Acabo de assistir Viajo porque preciso, volto porque te amo. Filme curioso e impactante. Ainda penso no que vi, muito: imagens, montagem, narração. É inevitavel pensar nas possibilidades e no acaso diante de tal obra e, claro, nas escolhas e elaboração que faz com que chamemos alguém de criador. Tive vontade de chorar algumas vezes. Senti o peso e lembrei de muitas perdas, as minhas e as que ouvi de pessoas próximas. Lembrei também de estradas, caminhos, fissuras, encontros, fugas e tentativas de resolução (trabalhos de amor perdido), às vezes com mais ou menos poesia.

domingo, 20 de junho de 2010

Kazuo Ohno (1906- 2010)


EU QUERO SER KASUO OHNO!

série caminhos

Não tinha nada a dizer. Era a mudez durante todo o dia ou talvez falasse com alguém nas manhãs em que saia sem dizer pra onde. Longe já se fazia também o tempo do sofá ocupado, dos ruídos dos filhos, dos comentários da mulher e vizinhos. Ele não estava mais lá. Esteve? Será que pensa na falta sentida? Aquela que talvez paire por lá mas que também caminhe por sobre a pele ali? O que guarda esta esfinge que não sugere nem mesmo um enigma a ser desvendado? Não é mistério, não é segredo. Silêncio apenas é o que ele guarda e cultua de um modo particular e intraduzível. No entorno, a culpa é festa para comentários, críticas, ameaças, impropérios e desapontamentos. Legítima é a honra, legítima é a dor, legítima é a decepção, legítima é a vontade de agir ou não, legítimo é aquilo que não sabemos, mas que está lá, operando mudanças invisíveis. De algum lugar, ou de alguma fresta na alma, todos podem falar ou calar, mas não é bem esta a questão. Dizem por aí que desejo é o insondável, nos ameaça, nos dá medo. E será que é um ser desejante aquele que religiosamente abraça o dia em longas caminhadas? O esforço de todos que pensam e observam é de dá sentido, explicar e quem sabe julgar. Mas há algo que é nó e enguiça nossa disposição analítica, felizmente. De nada sabemos deste nosso Bartebly incapaz do balbucio característico - o preferiria não não lhe cabe na boca. E o que lhe cabe na vida? É possível prever? O filho tenta abrir janelas, desbravar caminhos já fechados pelo tempo, esboçar clareiras. Inegável o afeto, inegável o vínculo. Mas algo encerra, impede; e um gosto gelado, que nada tem haver com as tardes de junho, chega pra espantar devires. Qualquer comentário sobre o que não podemos prever na vida somente trisca a imagem de alegria que paira sobre nossas cabeças e insistem em nos vestir. Diante do desfile grotesco de hienas, com suas roupas mal cerzidas, temos dificuldade em saber o que nos serve, o que gostamos. E a pergunta é inevitável: Quando é que escolhemos de verdade? A família não é mais a mesma. E o cotidiano ainda se faz no reativo do estranhamento e das motivações da mudança. Houve uma reviravolta ou uma reviraida. Quem sabe uma revirafuga? Não sabemos. Não sabemos.

domingo, 11 de abril de 2010

Os Buracos do Espelho - Arnaldo Antunes

o buraco do espelho está fechado

agora eu tenho que ficar aqui

com um olho aberto, outro acorda

dono lado de lá onde eu caí



pro lado de cá não tem acesso

mesmo que me chamem pelo nome

mesmo que admitam meu regresso

toda vez que eu vou a porta some



a janela some na parede


a palavra de água se dissolve

na palavra sede, a boca cede

antes de falar, e não se ouve



já tentei dormir a noite inteira

quatro, cinco, seis da madrugada

vou ficar ali nessa cadeira

uma orelha alerta, outra ligada



o buraco do espelho está fechado

agora eu tenho que ficar agora

fui pelo abandono abandonado

aqui dentro do lado de fora

quarta-feira, 7 de abril de 2010

sábado, 27 de março de 2010

com ele

“não há obra que não indique uma saída para a vida, que não trace um caminho entre as pedras”.
(Gilles Deleuze)

foi lá no blog da isadora isa


mas eu também gosto de crises e de criar com elas.

fantasia de carnaval 2010

Exílio.
Escrita do exílio.
Diáspora. Da diáspora.
Estranhamento.
Não-lugar que se faz em choque.
Como andar? Perdas e ganhos na expressão.
***
Mas, e se não fosse somente a expressão que contasse? Onde fica a vida que não cabe na expressão? E se víssemos freqüentemente que as pontes se desfazem com muita facilidade, que as portas se fecham sem receio, que não há janelas na parede da sala? Pra onde iria? Voltar já não é possível.
***
Outro dia tentei. Não consegui. E é da ordem do inominável a vertigem que paira.
***
Acomodo-me no estranhamento quando só às cinco horas da manha num domingo de Carnaval. Brevemente amanhece e, ao ligar a TV, tudo ainda é alegria já carregada de sono, suor e cansaço. Vislumbro algum desejo por descanso que me traz uma repentina solidariedade. E eu, Clarice Lispector, me vejo aqui mãe dos foliões, zelosa progenitora esperando que voltem pra casa, que bebam água, que se alimentem, renovem a fantasia e voltem pro cortejo pagão que desenha com muitos e tortos pés uma intempestiva esperança (...)

série pequenos espantos

O choro. Eu sozinho e ela chora. Meu gesto rápido e imediato é pegar a mamadeira, a chupeta, carregá-la no colo. Experimento. Experimento? Não sei. Melhor dizer aqui: testo. A origem do choro, penso e elucubro, ao tentar fazê-la dormir. Por que chora, minha pequena, se não tem ainda que tomar nenhuma decisão que lhe tire o chão? Se o abandono, desses que a gente passa ter consciência aos poucos, não lhe abateu? Se a dor do mundo não lhe (...) e quem disse que ela não sente a dor do mundo? Que estupidez a minha. Claro que o mundo taí pra ela e deve doer. Só que deve doer sem que ela possa falar da dor. Será que é pior doer sem palavras? Não sei, mas acho que quando a gente diz sobre algo que dói há uma espécie de conforto e uma esperança de passar (...) de passar a dor. Mas você ainda não pode me dizer, e eu tenho que adivinhar. Adivinhar? A dor? O Choro? Você, minha pequena, que curioso, minha pequena é um Você que chora e tem dor. A sua dor não é minha, nem seu choro. E agora? Não dou conta do meu, mas tenho que dar as mãos pra ela até (...) passar (...) ou até que ela aprenda a falar sobre a dor, o que não é garantia que ela consiga enfrentá-la ou superá-la. Ou até que, mesmo com dor, ela consiga um provisório aconchego aqui nos meus braços. É (...) e tenha o inicial aprendizado que é de provisórios aconchegos que vivemos. Vai passar, já tá passando. E o riso vem à galope, a curiosidade casa com um silêncio suave e eu já tô quase saindo do teste, quase na experiência desse afeto antes recusado pelo excesso de clichês.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Açucenas

Açucenas: não lembro
de nenhum céu que me console.
Só o que leio, a sós,
São os segundos,
sentidos,
São os açucares agudos
Da memória.
O silêncio rasgado azul
De uma bandeira.

( Armando Freitas Filho)

Com vc, Fofito querido, para rasgar os silêncios, escancarar o bocão da vida!

Saudades!

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

primeiro comentário

Um breve ensaio de crítica
“Pequenas histórias de trocas de pernas, peles e olhos nos seus arroubos e arredores” de Anderson Feliciano e Mário Rosa resumem, em seus diálogos rítmicos, o encontro conflitante entre o subjetivo e a realidade cotidiana. Ao fazerem de seus personagens pontes poéticas entre fantasiais e urbanidades, os autores da obra nos felicitam com uma rica oportunidade de pensar sobre o ser poético que somos e, entre todas as identificações que buscamos, o deixamos encostado nas paredes do medo. Medo do outro. Medo da loucura. A dramaturgia cresce com a parceria destes jovens escritores que ousadamente imprimiram em “Pequenas histórias de trocas de pernas, peles e olhos nos seus arroubos e arredores” a delicadeza humana cercada pelos prédios de concreto das cidades grandes e pelas mentes que, como concretos, não se curvam para admirarem a beleza de um desejo, de uma esperança, de “um sonho puro e sem recheio”.
Jéssica da Silveira

sábado, 30 de janeiro de 2010

agora

Agora (a.a)

AGORA QUE AGORA É NUNCA
AGORA POSSO RECUAR
AGORA SINTO MINHA TUMBA
AGORA O PEITO A REBUMBAR
AGORA A ÚLTIMA RESPOSTA
AGORA QUARTOS DE HOSPITAIS
AGORA ABREM UMA PORTA
AGORA NÃO SE CHORA MAIS
AGORA A CHUVA EVAPORA
AGORA AINDA NÃO CHOVEU
AGORA TENHO MAIS MEMÓRIA
AGORA TENHO O QUE FOI MEU
AGORA PASSA A PAISAGEM
AGORA NÃO ME DESPEDI
AGORA COMPRO UMA PASSAGEM
AGORA AINDA ESTOU DAQUI
AGORA SINTO MUITA SEDE
AGORA JÁ É MADRUGADA
AGORA DIANTE DA PAREDE
AGORA FALTA UMA PALAVRA
AGORA O VENTO NO CABELO
AGORA TODA MINHA ROUPA
AGORA VOLTA PRO NOVELO
AGORA A LÍNGUA EM MINHA BOCA
AGORA MEU AVÔ JÁ VIVE
AGORA MEU FILHO NASCEU
AGORA O FILHO QUE NÃO TIVE
AGORA A CRIANÇA SOU EU
AGORA SINTO UM GOSTO DOCE
AGORA VEJO A COR AZUL
AGORA A MÃO DE QUEM ME TROUXE
AGORA É SÓ MEU CORPO NU
AGORA EU NASÇO LÁ DE FORA
AGORA MINHA MÃE É O AR
AGORA EU VIVO NA BARRIGA
AGORA EU BRIGO PRA VOLTAR
AGORA

um dia ...

Um dia sonhei que podia atravessar essa ponte. Sonhei que os passos eram dados com segurança, que minhas pernas não tremiam. Que até podia olhar pra trás, sem medo, nem busca de aprovação, algo como: - vá sim, você merece ser feliz. Um dia sonhei que a decisão não estava sustentada em frágeis bambus, que a força era mantida por um desejo elaborado.
Um dia sonhei.
Mas ainda estou aqui. Sigo devagar, dando voltas. Às vezes estaciono. Em outros momentos percebo que a ampliação dos contornos se dá devagar, quase imperceptível a olho nu. A alegria roça a minha pele, mas, arredia, insiste em firmar o desapego. Eu já não lamento.
Recolhida, em danças que só eu percebo, por se darem em uma esfera íntima e inacessível, ouso movimentos de força que julgava impossíveis. Voltas, deslizes e aberturas compõem quadros sem molduras, cartografias sem limites nesse meu devir-bailarina.
Um dia sonhei.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

dos meus tempos de sambista

Em busca da Homenagem Perdida

Ainda não encontrei a levada que me faça homenagear você
delicadamente
assumidamente
Exposição em larga escala
De um semba candente

Ainda não encontrei a levada que me faça homenagear você
Cuidado nas palavras
Que revelam o desejo de um amor rente

O sentimento de convívio e história
Narrado na língua da gente


Ainda não encontrei a levada que me faça homenagear você
Um tatibitate solene
De elegância sentimental

Que harmonize corpos e dores
alegrias e dissabores

Estridencia adicional

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

lágrimas negras

Na frente do cortejo
O meu beijo
Forte como o aço
Meu abraço
São poços de petróleo
A luz negra dos seus olhos
Lágrimas negras
Caem, saem, dóem

Por entre flores e estrelas
Você usa uma delas como brinco
Pendurada na orelha
Astronauta da saudade
Com a boca toda vermelha
Lágrimas negras
Caem, saem, dóem

São como pedras de moinhos
Que moem, roem, moem
E você baby vai, vem, vai
E você baby vem, vai, vem

Belezas são coisas acesas por dentro
Tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento
Lágrimas negras
Caem, saem, doem
(jorge mautner/nelson jacobina)

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

peixes

e pássaros

domingo, 3 de janeiro de 2010

...

Sala, televisão ligada. Quarto, televisão ligada. O mesmo canal. Na sala, o pai dorme. No quarto, o filho come. "Vez ou outra", o pai olha pro que passa na tela e resmunga para si, como se deixasse claro que não cai naquela manipulação. O filho nada diz, come atento ao que passa na tela; entre uma garfada e outra, ri. Ri do que? O que segura seu olhar? E se pensasse em desligar? Comeria? Riria do que? Assiste e come e ri. O pai dorme, não, cochila. E, dependendo da risada do filho, acorda do seu cochilo e assiste e resmunga e critica, mas nunca ri. E do que riria? O que tanto critica? E se pensasse em desligar? O que criticaria? O filho passa pela sala e vai até a cozinha rechear o seu prato. Pai e filho mal se olham, mas o filho não perde a oportunidade, ao passar novamente pela sala, de parar em frente à televisão e assistir e rir, como se buscasse a cumplicidade e uma peculiar aproximação. Pela tela os olhares se aproximam, frações de segundo, e se perdem numa estranha desatenção, rapidamente disfarçada pelo riso, por um resmungo tímido (...). O filho volta pro quarto abastecido, pronto pra comer e rir; o pai, retoma o cochilo e o "vez ou outra" da dispersão.
(da série "novas-velhas interações 2010")

sábado, 2 de janeiro de 2010

2010

"(...) e quero fátria"

instigado

Instigado pode ser pra começar.
A palavra que acompanha a ficção da retomada.
A ficção que fundamenta o recomeço.
Instigado-ficção-recomeço num grande bloco agora anunciado.