domingo, 26 de abril de 2009

fragmentos

"(...)
Não encontrava graça naquele excesso de música nos finais de semana, pela manhã, em que o primogênito, esquecido das gentilezas, era acometido da tresloucada função de acordar o mundo num estridente mau gosto musical. “Histéricos”, pensava, uns mais que os outros. Em meio à felicidade em modulações desreguladas dos habitantes daquele apartamento, procurava um lugar em que pudesse ficar tranqüilo, sem ser visto e importunado. Tinha problema com a alegria, já que, quase sempre, desencadeava afagos desnecessários, apertos, convites pra passeios fora de hora, ânimos pra estripulias e idéias sobre limpeza que o fazia ficar bem irritado - fora as tentativas malogradas e patéticas de comunicação, num tatibitate que o levava a sentimentos, quase humanos, de compaixão e tédio. Era um gato sistemático, tinha consciência disso e não se importava. Não se importava também de estar encurralado no clichê do “ser gato no mundo”: preguiçoso, temperamental, arredio, um tanto lânguido no viver, irritadiço. Utilizava esses traços, casualmente, quando lhe convinha. Sabia que era mais, que colidia com certas expectativas, mas não se importava com juízos apressados, desde que não lhe incomodassem. (...)"

antigo e com todos os vícios e entusiasmos.



E o Céu ...
O Céu de Suely é um filme que chama atenção pelo modo delicado como conta a sua história. Essa delicadeza no narrar está associada à não intenção do diretor em desenvolver uma grande trama e também à distância que é estabelecida ao que comumente vemos nas abordagens cinematográficas focadas em personagens femininos.
Nessa obra dirigida Karim Ainöuz, não há a explicita convergência com um modelo estereotipado de feminino, mas o cuidado em apresentar uma mulher (Hermina/Suely), para além de julgamentos morais, com seus anseios, dúvidas, perdas e esperanças.
Para essa empreitada, a aridez do espaço, o sertão cearense, espraia-se e contamina vários campos, tais como: a relação entre os personagens, as atitudes e os modos como esses constroem possibilidades de vida satisfatória, a relação com a cidade de Iguatu, lugar de retorno e fuga, e também a linguagem da narrativa cinematográfica.
O filme consegue trabalhar bem com essa escolha que é temática e formal, ao mesmo tempo em que deixa perceber o desejo, que se revela nos interstícios.
Há uma proposta interessante que é a de pouco revelar das cenas, apresentando-as como registro de uma realidade na sua incompletude e fragmentação. Esse caminho, que em um primeiro momento pode levar a uma certa estranheza, expõe a importância da unidade de um bom roteiro e cobra dos espectadores a tarefa de serem co-autores do filme no preenchimento dos espaços em branco.
Sobre esse mesmo aspecto, é importante considerar a bela construção da personagem Hermina, também apresentada em fragmentos, que é movida por paixão e por um desconforto no mundo. E, talvez, o que mais nos encante em uma elaboração que contrasta a crueza e o diáfano seja justamente as possibilidades que a personagem insista em criar, corajosamente e de modo pouco consciente, em um contexto que poucas oportunidades oferecem.
O filme, sem dúvida alguma, apresenta um rigor e vigor cinematográfico, aliando roteiro amarrado e “sugestivo”, uma direção que se apresenta como criadora e que convida o público a participar, fotografia que é tomada pela articulação entre aridez e delicadeza, e um elenco bem preparado que caminha com contundência pela aquela história e que se expõe de modo apaixonante. Enfim, mais um belo trabalho de Ainöuz que, após Madame Satã, inova com esse filme-poema, cuja temática é a busca, ou melhor, a sua possibilidade, definida a partir da paixão e da superação de situações desumanizadoras.