terça-feira, 1 de março de 2011

de Janeiro

A Natureza-Morta de João


João sentado junto a Marcelo e Leandro. De relance percebe que algo acontece. Uma forte impressão lhe ronda e, num movimento de proteção ou investimento na “paz”, prefere focar toda atenção na pintura de natureza-morta na parede. Será? É a pergunta que se desenha sobre a maçã que rola sobre a mesa. Sua atenção aparente permanece lá, e esta aparente atenção focada lá e desfocada cá, entre os convivas, não é percebida. Os dois conversam, conversam e é assustador para João ver tanta alegria naquela conversa. João não sabe precisar, mesmo com esforço, o quanto de inadequado é todo aquele (...), toda aquela sensação. Eles não percebem seu desassossego, sua perscrutação sutil. O quadro se torna uma espécie de via para o passado em que João relembra o gosto bom de uma conversa parecida, com direito a olhares que desenham identificação e silêncios indiciários. Natureza-morta. A vontade de João é sair correndo daquele apartamento até que uma esquina lhe seja segura. Mas ele não corre, não sai do lugar, não desvia os olhos do quadro, não deixa de obliquamente imaginar o quanto já perdeu. Sua e tenta, sem grande esforço, fazer um comentário que mude toda a rota da conversa. Em vão. São de órbitas diferentes o movimento dos astros. Todo um bom mocismo, ou talvez um estranho engasgo, o impede do grito que um dia pensara ser capaz. Nessa divagação, João subitamente relembra uma frase lida há muito tempo, e que ficara na memória como uma mensagem isolada que adquiria potência de imagem: Um grito parado no ar. Ri sutilmente, pois nem do inicial grito foi capaz, ou mesmo de qualquer ruído que rompesse o doloroso estado sólido-gelado do medo. Ele, João, é somente olhos e um sólido-gelado incrustado na cadeira. Marcelo, que se mantém com a mão sobre o joelho de João, numa lembrança do que foi e numa sugestão do que pode ser em outra órbita, deixa transparecer um corpo livre, um corpo convite. Leandro finca surpresa em território perigoso, semeando ousadia, ousadia daqueles que apreciam o trabalho diário em amplos jardins. Afinidades eletivas, coincidências, dúvidas, gelo, trocas, sugestões, olhares e tantos outros afins finca a cabeça de João, com Bebel Gilberto colorindo panos de fundo e incrementando os retratos múltiplos nas paredes que, pesadas e opressivas, anunciam o esmagamento. A Natureza-Morta se intensifica em cores e vibrações. Um estado de febre rege os movimentos de João. E se, de repente, vamos embora? Não, afinal a casa é sua e o convite foi seu. Se pergunta também sobre o quadro na parede e sobre uma sensação de vertigem anunciada. Já não ouve o que dizem, não compartilha com sorriso nem aceno de cabeça. Ele é todo lamento de algo que não estava lá, naquela mesa. O Como não percebi? é insistente. E, num estalo, o que seria uma apresentação social rascunha-se como o principio de alguma coisa que não começava ali. A natureza morta tinha vida, e isso era o que mais o incomodava. Um silêncio e uma agitação reposicionam as presenças, que sentem as paredes, o gelo e a febre em gradações variadas. João exercita um silêncio que conduz outros silêncios e gestos. Percebe uma posição que ultrapassa a do anfitrião. É ali o criador de uma obra, sua grande obra pictórica. Um trabalho que utiliza resíduos, escombros, tecidos já não mais usados, acrescidos de um esgarçamento do tempo materializado no mais requintado verniz. Seu quadro cristalizado permanece sobre o gasto ocre de uma parede recentemente percebida, tendo traços assimétricos continuamente renovados pela dúvida. Mas o que corrói mesmo João é o vislumbre de que não cabe mais naquele lugar e de que não é a razão de toda aquela alegria. Em sua Natureza-Morta o chão conversa com a parede em conluio. Não cabe mais certezas nem confortos, desintegra-se a morada da verdade.

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