domingo, 4 de janeiro de 2009

Cleópatra na Mostra Passou Batido


Dia 5 de janeiro começa a Mostra Passou Batido, no Palácio das Artes. E, sem dúvida, um filme que passou batidíssimo (uma semana apenas) e merece ser visto é Cleópatra. Segue uma das críticas do filme, retirada do site revistacinetica.com.br.


Cleópatra, de Julio Bressane

Francis Vogner dos Reis

Elogio ao amor
Cleópatra de Julio Bressane é um filme anti-intelectual. A afirmação pode parecer irônica, mas se levarmos em conta que Bressane não usa o cinema como um mero mecanismo de reflexão intelectual (suas imagens são concretas, não metáforas) e também não o tem como um meio de investigação racional que vai delegando sentidos e leituras imediatas a cada imagem, a pecha de “filme cabeça” não faz muito sentido. Seus filmes, Cleópatra em especial, não são invólucros com um conteúdo ilustre, não possuem aspirações inteligentes: o que eles têm são sensibilidades únicas que existem a partir de suas imagens. As preocupações do diretor Julio Bressane certamente são fruto de seu singular instigamento intelectual, mas seus filmes não existem exatamente para contemplar sua vasta cultura e se adequar à sua visão de mundo. Seus filmes, assim como os de Sganzerla, Pasolini e Godard são tão grosseiros quanto sublimes. Seu segredo, seu espírito, reside nessa dualidade.
Este Cleópatra que foi vaiado por uma parte do público no festival de Brasília não é um de seus filmes que pedem uma abertura maior do espectador para estabelecer uma relação com ele. O mito da rainha egípcia Cleópatra VII está lá e Bressane o respeita quase que integralmente. Sua fama de mulher culta, seus casos com Júlio César e Marco Antônio, a política – tanto a de diplomacia quanto a de alcova – e sua morte. Há até uma estrutura dramática (mas não exatamente um desenvolvimento dramático), algo raro nos filmes do diretor, apesar de que a intenção de Bressane não é fazer um trabalho como os de Cecil B. DeMille e Joseph L. Mankiewicz.
No filme, Julio Bressane faz o que pode ser considerado um estudo poético da beleza ou da expressão da beleza. Não de uma beleza que se julgue a partir do enlevo, da norma ou, paradoxalmente, da sua negação. O diretor não trabalha no nível da oposição nem busca afirmar o que é belo. Seu trabalho é o da transcendência do belo, de ultrapassar o que por si só é considerado “bonito” ou “artístico” para atingir uma força que emana das imagens, de suas somas, de seus signos. Em outras palavras: o esforço de Bressane em Cleópatra é atravessar a “estética” (como norma de beleza, de valor, de sentido), indo além dela – nada mais natural já que em alguns de seus últimos trabalhos ele escolheu personagens de “passagem” como um tradutor (São Jerônimo) e o filósofo da transvaloração (Nietzsche). São personagens no limiar de um mundo velho e na tentativa de conferir valor e significado a um mundo novo.
Bressane procura em Cleópatra uma personagem capaz de sintetizar, e trazer à luz, toda sorte de imagens necessárias para que ele trabalhe a expressão – pictórica, léxica e musical – de questões que englobam sua poética sobre o conhecimento e a arte (“sou Alexandria e sou Atenas”, diz a personagem), uma espécie de versão do autor sobre as imagens que constituem o conhecimento e a arte ocidentais. A Cleópatra de Alessandra Negrini (na performance mais radical do cinema brasileiro nos últimos anos) é uma espécie de médium, de receptáculo que absorve e transborda ao mesmo tempo as forças vitais da beleza e do conhecimento. Tanto que ela é cortejada pela Roma decadente que sofre de uma aridez criativa, de uma escassez de beleza e de um sufocamento do poder. Segundo o próprio César “a cultura latina é um erro, uma deturpação da grega”. Roma tem em Cleópatra uma imagem da promessa de ser o que não conseguiu ser. Um desejo do que lhe é ausente.
A potência de Cleópatra de Bressane vem de um rigor que não se basta pelo seu conjunto de imagens belas ou pelo seu célebre repertório temático ou até mesmo pelo toque do autor Bressane, já que outros filmes com a sua marca tipo Miramar e em alguns momentos até mesmo O Mandarim, são totalmente apáticos e desprovidos de vida. Existe nele uma energia que, se não violenta a percepção (não chega a tanto), “nos dá a ver”, e isso é raro. Raro porque faz de imagens concretas, nada subjetivistas, a modulação de sua força, de materialização de seu espírito poético. Por isso, muitas vezes Cleópatra nos lembra alguns filmes mudos (Meliés) ou aqueles que têm sua grandeza no uso mínimo (e essencial) das palavras e das imagens (Dreyer). Aqui a luz de Walter Carvalho tem um papel primordial porque, entre outras coisas, obedece ao projeto de um cineasta. Ou seja: é menos marcada pela personalidade “WC”, que em muitos filmes parece francamente trabalhar de maneira autônoma.
Basta querer “ver” para entender que essa lenda que os filmes de Júlio Bressane são prolixos é uma bobagem, retórica preguiçosa de quem opta por entender as coisas através de “lentes mentais”. Já alguém que nunca viu um filme na vida, e assista a Cleópatra, verá, essencialmente (e mais do que em qualquer outro filme), qual a sua particularidade como forma de expressão, desde um enquadramento que se sabe “composição”, passando pela disjunção da imagem sonora e da visual e chegando à musicalidade da disposição das imagens. É um filme didático (no bom sentido) que expõe de maneira clara “do que o cinema é feito”. Cleópatra é feito com a câmera e depende da luz, simples assim. É um filme de cinema exasperado em sua radicalidade, mas com serenidade. É um filme que rejeita velhas categorias de pensamento, é um cinema do futuro: a vocação de todos os grandes filmes em qualquer época.

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